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A mulher na curva do rio: alexandre costa

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 16 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

É domingo.

Estou caminhando por uma estrada de cascalho e terra que margeia um rio que não sei o nome, nem procurei saber, não é relevante para meu passeio. A trilha é coberta por essas pequenas pedras de rio, nos dois lados uma pequena vegetação rasteira que se alterna com algumas árvores não muito grandes e de pouca sombra. Eu vejo na outra margem, onde o rio faz uma leve curva para a direita e tenta se esconder de mim, um corpo. Eu me assusto surpreendido pela cena. Ele está de bruços e seu braço direito está agarrado às pedras num abraço tardio. A correnteza é mansa, o corpo balança e bate de encontro à margem, parece morto, mas não tenho certeza, preciso atravessar e tentar salvar quem quer que seja aquela pessoa. Coloco meus pés na água e dou alguns passos para dentro do rio e percebo que o local é raso o suficiente para atravessar. A água gelada está quase perto de meus joelhos e consigo chegar à outra margem. Me pergunto se seria um homem ou uma mulher e o que teria acontecido. Ao me aproximar o suficiente para identificar quem seria, percebo que é o corpo de uma mulher, jovem, cabelos curtos, bem curtos abaixo da orelha, negros feito o escuro dos olhos fechados, magra ao extremo, seu vestido que batia abaixo dos joelhos estava todo rasgado. Olho fixamente por alguns segundos tentando assimilar a situação e penso no contexto de tudo aquilo. Me pergunto: por que eu? Olho ao redor e não vejo ninguém se aproximando, estou só. Só não, estou com o corpo de uma mulher morta a minha frente. Sim, ela está morta.

Fico de joelhos no cascalho e penso em tocar no corpo, espero uma reação mesmo sabendo que não verei uma. Empurro suas costas na direção contrária da margem para livrar seu abraço da pedra fria. O corpo se vira de frente para mim e eu vejo um rosto branco feito nuvem, inchado, sobrancelhas bem finas, nariz pontudo, na boca entreaberta vi algumas pedrinhas entre os dentes, ela mordia a língua bem no canto da boca, parecia estar lá há alguns dias. Eu pulei para trás e caí sentado, estupefato. Eu, definitivamente não estava mais responsável apenas por mim naquele momento, eu tinha que acionar a polícia, os bombeiros.

Quem é você? – ela disse com a voz abafada Eu fiquei ali onde havia caído olhando pra ela. Eu já estou aqui há muito tempo e você é a primeira pessoa que eu vejo essa semana. Eu estava passando, digo, caminhando na trilha e vi você caída aqui. Desculpe a minha aparência. Por que o fato de eu estar falando com uma pessoa morta não me assombrava a ponto de sair correndo? Não sei.

Ela então se levantou. De pé a minha frente parecia mais alta do que percebi ao vê-la caída entre as pedras. Apoiei-me no chão com as duas mãos e andei para trás com a ajuda dos pés num movimento de fuga. Algumas pedras arranharam minhas mãos e a direita sangrou um pouco. Ela estava bem em cima de mim agora, a água pingava dos cabelos encharcados e caía no meu peito. Ela continuava vindo e eu me afastando, arrastando no cascalho. Eu preciso que você me faça um favor, essa pedra enorme dentro da minha boca não me deixa falar direito, você precisa tirá-la para mim. Ela disse aquilo e deu um sorriso negro que me congelou ali no chão.

De repente eu percebi que muito tempo havia passado e o sol já tinha se posto, deixando todo o cenário a minha volta na penumbra. Procurei um pouco de sua luz avermelhando o horizonte, mas não encontrei. Enquanto me afastava daquele cadáver falante, percebi que havia parado na margem do rio, seus pés ainda tocavam a água, estava com os braços estendidos como se quisesse alcançar alguma coisa. No caso, eu. Levantei-me rapidamente. De pé, me senti menos apavorado. Quem é você? Está morta mesmo? Comecei a duvidar. Eu morri há muito tempo atrás, aqui mesmo. Fui jogada no rio e sufocada até a morte por um homem desconhecido, eu tentei fugir dele, mas não consegui. Na época eu fazia essa mesma trilha que você quando ele apareceu por detrás de uma árvore, eu não pude evitar, eu não tinha forças contra ele. Eu estou com medo do escuro. Não consigo falar nem respirar direito com essa pedra dentro da boca, preciso que você me ajude a retirá-la. Eu tremi. Mas se você está morta, por que precisa tirar essa pedra da boca? Se você me ajudar eu posso respirar melhor e talvez até ir embora daqui. Eu não sei se deveria fazer isso. Ela então começou a chorar e ajoelhou-se à margem com as mãos no rosto branco e inchado, os joelhos apertando as pequenas pedras do rio afundaram na terra ainda molhada. Vem até aqui então que eu te ajudo. Eu estava disposto a colocar um fim naquilo, eu queria mesmo sair dali. Venha você até aqui e me ajude, por favor. Dei alguns passos em sua direção pensando que bastava tirar a pedra e eu poderia sair dali e nunca mais voltar, contar a minha aventura bizarra para os amigos e um dia, esquecer tudo.

Eu lembro que ela sorriu quando me aproximei. Lembro que vi a pedra e tentei tirá-la, mas não saía. Lembro que senti que ela me abraçava. Depois não me lembro de mais nada.

Existe uma história macabra. Uma lenda que poucas pessoas conhecem e outras nunca ouviram falar. São essas pessoas as maiores vítimas da mulher da curva do rio. Ela fica à espreita atrás de uma árvore na trilha de cascalho e terra vermelha à espera de alguém desavisado. Então ela se deita na margem oposta do rio para ser vista por um passante. Ela fica ali desde o dia em que foi morta à espera de que seu carrasco volte ao local do crime para se vingar. Enquanto isso não acontece, para não apodrecer para sempre, precisa de corpos sadios de outras pessoas. Ela então coloca uma pedra dentro da boca e pede para que a pessoa a ajude a retirar, com a desculpa de que não consegue falar nem respirar direito. Por algum motivo que ninguém até hoje sabe, as pessoas não fogem, ao contrário, ficam para ajudar. Então ela os abraça e mergulha numa parte funda do rio que só ela conhece, matando sua vítima e conseguindo mais tempo para sua vingança. Cuidado ao caminhar por trilhas desconhecidas.

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