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Amor: alexandre costa

  • Foto do escritor: cafe & outras palavras
    cafe & outras palavras
  • 15 de ago. de 2019
  • 3 min de leitura



O amor estava à mesa a jantar com os dois: Olga e Rui. Posto em camadas finas e ligeiramente embriagado com um perfume caro. O sorriso espetado que refletia na bandeja de brigadeiros denunciava a impaciência dos dois. Olga suspirou a abanar-se com um leque de desculpas, Rui comprimiu os olhos na esperança de desaparecer no ar, virar um engano na frente dela. Não se amavam, não se entendiam, não se queriam, jamais!

Mas cá fora, no jardim, as famílias se avermelhavam de alegria, uma alegria de inveja, mas sem o rancor que habitava os dois, uma alegria que se aceita lisonjeado, de bom grado. Entregavam-se uns aos outros como se entrega o dízimo aos domingos, e essa amizade era ardente e colérica, renovada a cada encontro.

Pois que no jardim com o sol espetado em nuvens e o céu decorando as cabeças, o vento brando dos acontecimentos não dava cabo de unir os dois lá dentro.

O amor estava à mesa, mas fora preterido pelos dois, não se amavam. Ele a achava fria, destemperada, achatada. Ela o via como um cabrito faltava-lhe tudo, inclusive algo que o definisse como alguma coisa: era só um objeto impreciso e descartável.

Em certo momento não se olhavam mais, não queriam marcar-lhes a retina com tão desastrosa imagem.

Cá fora, feito rebanho de ovelhas, todos pareciam dizer as mesmas palavras, um refrão indecifrável de uma canção ignóbil. Sim as famílias se amavam. E tinha de tudo: os magros e os gordos, os feios e os belos, os altos e os baixos, os brancos e os negros, os ricos e os pobres; e havia aqueles que acreditavam no amor que nenhum dano causa.

Dum momento para o outro Rui levantou-se com raiva, pôs-se de pé diante de Olga e na fraqueza de um primeiro encontro pareceu que cuspia as orquídeas que enfeitavam a mesa. Embriagada pelo número absurdo de um licoroso bombom que havia devorado ela ria inflada, assemelhando-se a uma jubarte. Ele virou-se de costas, e agora ela acotovelava-se por sobre os manjares e as bombas de chocolate. Sem esforço comeu mais de uma dúzia deles.

E essa gargalhada que vinha lá de fora?, só podia ser dos apadrinhados, exultantes e prenhes de um amor cor-de-rosa. Mas eles não se amavam.

Ela, com olhos de holofote, mantinha-se absorta, resignada, cheia, à espera dos outros pratos. Ele, com humor de elevador, olhou dentro do decote redondo de Olga, e foi nesse instante que faltou-lhe um sentimento: piedade. Não se amariam jamais.

Cá fora, o ruído dos estômagos vazios enlouqueciam os garçons. Mas que!, já haviam repetido duas vezes o almoço! Sim, Deus bem que quis entrar naquela festança, tomar um pouco para si da alegria sem julgamentos, da ressonância natural que eles emitiam livremente e talvez colocar um pouco no coração de Olga e Rui, mas ele era apenas Deus e não podia tomar partido nisso!

Os dois estavam à mesa, mas o amor posto de lado numa bandeja suja foi levado pelo garçom até a cozinha. Alguns se sentiram nus com a falta, mas eles, eles não se amavam.

Ele teve vontade de rir, ela vontade de chorar, se um tinha segurança o outro a garganta vazia, se um lhe pedia resposta o outro lhe punha enfeites grosseiros. Olga era adjetivo, Rui substantivo. Se quisessem podiam pôr fim naquilo tudo ali mesmo, entornariam suas diferenças na sopa servida fria. Mas as famílias que se amavam lá fora não tinham nada a ver com isso. Ou tinham?, não sei.

O sol, espetado nas árvores do jardim pôs cor e temperatura nas crianças e nos velhos, nos maridos e nas sogras, nas comadres e nos genros, nos vestidos enfeitados e nas pregas das calças, tudo estava acabado.

Eles não se amavam nunca se amariam, nunca fariam amor. Ela ficaria à noite em casa bordando toalhas de mesa, ele entregar-se-ia à farra com amantes, bebidas e jogo. Ela engordaria ainda mais, criaria varizes nas pernas e os seios despencariam, enquanto ele desenvolveria uma doença venérea que lhe incapacitaria para a reprodução, mas nada podia impedir que as famílias se amassem, nem eles podiam.





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