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dia de leitura: alexandre costa

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 26 de fev. de 2020
  • 6 min de leitura

Desculpe, não sou cronista! – disse enquanto assinava a dedicatória. Como é mesmo o seu nome? – me perguntou. Nelson! – respondi meio envergonhado e emendei: se o senhor não é cronista o que é então? Um ranzinza que odeia a humanidade, e como não pode mudar nada, escreve para desopilar o fígado – me respondeu sem levantar a cabeça. Peguei o livro para ler a dedicatória, mas tinha uma letra ilegível, deixei pra lá e nem perguntei o que estava escrito para não ofendê-lo. Só tenho a mão esquerda pra escrever e não sou canhoto; desculpe a letra – disse-me, tentando explicar o garrancho e mostrou-me a mão direita inchada e meio deformada. Foi uma crise de ira. Nunca mais será a mesma. Não presta nem para escrever. Constrangido, enfiou-a de volta no bolso da calça. Olhando fixamente dentro de meus olhos, perguntou se tinha conseguido entender o que estava escrito. Ninguém entende, mas como não perguntam nada, nada digo – riu de ficar vermelho.

Obrigado! – respondi e saí com medo que me perguntasse o que havia achado do livro, mas ele foi mais rápido que eu. E então, o que você achou? Da dedicatória? – perguntei com aquela cara de idiota que só eu tenho. Não. Do livro! E agora a pergunta vinha carregada de um peso insuportável para mim. Não sou crítico literário – respondi seco. Não precisa ser – ele emendou agora mais simpático. Estendeu a mão e me convidou pra sentar à mesa e tomar um cafezinho, servido pelos editores.

Nunca participei de uma noite de autógrafos! – disse. Nem eu. É meu primeiro livro. Ele respondeu tomando uma xícara de café de um gole só. Mas você não respondeu a minha pergunta. – disse-me sério. Sobre o livro? – lá estava eu tentando fugir dele! Sim. O que você achou? Não entendia o que ele estava tentando me dizer, afinal eu ainda não tinha lido o livro. Como eu poderia responder a pergunta? Foi então que percebi outra coisa: não havia mais ninguém na livraria – apenas eu – o único leitor(?)

Olhei na mesa e vi que o livro que eu tinha nas mãos era o único exemplar que ele possuía. Olhei para ele a fim de responder a pergunta, mas ele me fez outra. Você fuma? – perguntou já com um charuto acesso entre os dedos. Chacoalhou o fósforo, deu uma baforada na minha cara e abanou a fumaça com a mão. Desculpe! – disse por mera obrigação! Tosse, tosse, tosse…

Tentei ser simpático também. Mas eu ainda nem li, como posso responder? Você tem razão. Estou sendo precipitado. – reconheceu. Depois se virou para uma pilha grande que havia debaixo da mesa, e que só agora eu percebera. Quantos você tem aí? Trinta! Não é um numero muito pequeno para uma edição? Você conhece trinta pessoas que lêem? – me perguntou com uma expressão séria demais para o meu gosto. Não! Então para que imprimir mais? – emendou.

Aquilo fazia muito sentido. Por um momento fiquei pensando, tentando juntar em minha mente trinta pessoas que tinham o hábito de ler dentro do meu círculo de amizade. Conheço dois – respondi com um sorriso, querendo parecer que duas pessoas era um universo imenso para ler um livro. Ele deu outra baforada na minha cara. Agora de propósito. Tosse, tosse, tosse…

Dê-me o nome delas – ele me disse, não, ele ordenou como se fosse um assaltante roubando uma velhinha indefesa. Fiquei branco, como vou lembrar o nome de duas pessoas que leem assim sob pressão? Disse que não me lembrava. Como não se lembra? Você não quer que eu venda meu livro a elas? Bateu com a mão direita outra vez. Agora sei como ele a quebra, e me acusou de também ser escritor e estar fazendo uma reserva de leitores. Não, não! Não estou fazendo reserva de leitores, mas sim – sussurrei, olhando para os lados como com medo de que fosse descoberto -, também escrevo alguma coisa. E senti que ele chutou os exemplares que estavam debaixo da mesa. Bosta! Que azar, meu único leitor também é escritor. Quando disse isso, fui encolhendo na cadeira de tanta vergonha. Ou era medo dele(?) Desconfiado de que eu podia estar mentindo, perguntou: Você já escreveu alguma coisa na vida? Um bilhete, uma carta pra namorada, anotou um recado? Tenho alguns contos, mas nunca publiquei – respondi, pronto para ser xingado, mas ele desistiu da luta. Deixa pra lá! – terminou de falar e deu outra baforada! Tosse…tosse…tosse! Dessa vez eu mesmo abanei a fumaça com as mãos.

Se você me permite vou embora agora. Não! – gritou assustado! Preciso de alguém aqui pra chamar a atenção para mim. Mas eu não sou garoto propaganda – protestei. Talvez depois de ler o seu livro eu pense nisso. Pois eu digo que o livro é muito bom! Se é tão bom assim, por que você só vendeu um até agora? Falta de uma boa estratégia de venda, eu acho!

Tomou mais uma xícara de café, deu a última baforada no charuto, amassou a bituca que restou no cinzeiro, depois fechou a caderneta onde anotou a quantidade de livros vendidos naquele dia. Levantou-se segurando no espaldar da cadeira. Levantei-me junto com ele e estendi a mão a fim de cumprimentá-lo e ir embora definitivamente daquele lugar. Ele me segurou e chamou para um café no bar da livraria. Vamos lá, afinal não tenho mais ninguém pra conversar mesmo e, pelo que vejo, não vou vender outro exemplar hoje. Mas…, mas eu preciso ir – insisti. Uma saideira! Olha, sei que você quer ser simpático porque precisa disso para fisgar o seu público, mas eu não estou a fim de ficar mais nenhum minuto aqui. – E agora minha voz soava imperativa como nunca havia soado antes. Ok! Ele pareceu indeciso na resposta, mas foi a minha deixa. Dei as costas e fui embora. Depois de alguns passos ouvi sua voz mais uma vez. Então me diga o que achou do prefácio pelo menos. Eu mesmo escrevi. Você precisa ler, não entende?, você tem que ler pelo menos o prefácio e me dar a sua opinião. Aquela foi a gota d’água. Tirei o livro da sacola e joguei-o de volta na mesa. Nem me preocupei com o dinheiro que havia gasto, mas ele me alertou. Não vai levar o livro?, então pegue seu dinheiro de volta. Fiz que não ouvi. Aliás, nunca deveria ter entrado naquela livraria. Quase fico refém de um escritor passivo-suicida, litero-homicida. Mas de repente me bateu um sentimento de culpa. Culpa por deixar para trás um futuro escritor de sucesso, um prêmio Nobel de literatura, ou simplesmente um cara querendo vender suas crônicas para alguém mais que a própria família e amigos. Voltei. Precisava me desculpar e fazer o que ele havia me pedido. Veja só quem voltou?! – ele debochou de mim agora. Perdeu alguma coisa? Não! – respondi seco, mas com educação. Vim porque acho que você merece uma chance, eu mesmo nunca tive a sorte de ter um editor para lançar meus contos. Qual o seu motivo para escrever? – me perguntou.

Acho que de algum modo todos querem se fazer ouvir, e desejam que o outro o reconheça. Todos têm essa vontade dentro de si e, ainda que precariamente não consiga expressar suas ideias, suas emoções, faz o possível para ser consciente e expressivo – não lembro de ter explicado a minha opinião desse modo a ninguém, mas parecia que ele conseguia tirar de dentro de mim algo que eu nem sabia que existia. Ele, então, continuou a minha explicação, enquanto acendia outro charuto e dava uma baforada. Tosse, tosse, tosse…

De repente ficou claro para mim que tínhamos a mesma linha de pensamento. Sabíamos que a linguagem e o pensamento passam necessariamente pelo espírito, para depois despejar-se no mundo material através da fala e da escrita. Isso nos uniu de alguma maneira naquele momento. Então, aquela figura sisuda do escritor à minha frente desmoronou. Eu vi ali naquele homem um valor que não encontrara antes em nenhum outro. Pedi que ele continuasse a explicação. Ele o fez e me deu um conselho que desde então sigo. Escreva livremente, naturalmente, ouvindo sua própria voz interior. Afinal, não existe escrita que não seja construída com o corpo e com a emoção. Peguei o livro que havia jogado em cima da mesa, olhei mais uma vez a dedicatória e desta vez pude entender perfeitamente o que estava escrito naquelas palavras tortas. Levantamos-nos e eu o cumprimentei. Ele sorriu mais uma vez, soprando a fumaça do charuto no meu rosto. Tosse, tosse, tosse…

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Cafe e outras Palavras
Cafe e outras Palavras
Feb 26, 2020

Um final feliz...

Mercadoria nos dias que correm.

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