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Faça chuva: alexandre costa

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 21 de mar. de 2020
  • 3 min de leitura

Chovia lá fora, Pedro olhava a chuva, Pedro pensava ‘essa chuva nunca mais vai parar’, Pedro do lado de dentro, no apartamento, olhava a chuva pela janela, ela batia forte no vidro querendo entrar, do lado de dentro Pedro não sabia, não sabia o que fazer, ler um livro para enganar o tempo e a si mesmo?, mas Pedro estava vazio, se esquivava do tédio olhando a chuva do lado de fora querendo entrar pela fresta da janela, olhava a chuva sem perspectivas e, sem perspectivas ele ficara ansioso e irritado. Olhava para a janela e a chuva continuava a lamber o vidro, viu os círculos concêntricos das gotas grossas nas poças que se formavam na marquise. Pedro mora no primeiro andar, logo acima das garagens coletivas, não gosta do barulho que os carros fazem logo de manhã. Os círculos concêntricos das poças que a chuva cria na marquise acima do andar das garagens não o distrai. Pedro tem pensado tanto que já não consegue pensar em mais nada, sua mente apaga e fica estático, olhando a chuva, os círculos, a marquise, o nada e o tudo, os ângulos retos no encontro das paredes, as manchas de vinho no carpete velho, a mesa de centro toda queimada dos cigarros que os amigos descansavam enquanto bebiam em noites de algazarra. Era tudo tão vago agora e sem sentido. Pedro em transe não se olhava porque olhava a chuva e pensava que nunca mais ela o deixaria. Nada tirava Pedro do transe.

Pedro passa a mão na cabeça depois no rosto depois tenta atingir o inatingível depois descobre a tranquilidade depois clama pela esperança depois encontra palavras alienígenas para explicar sua vida para si mesmo depois se lembra da vida adulta que não lhe dá trégua. A chuva, lembra Pedro, a chuva não para, e Pedro sente falta de quem não tem, sonha acordado com dias melhores, sonha ser protagonista de sua própria história, mas Pedro é apenas um desgraçado passageiro da vida, do sistema político e econômico, e do humor ácido e indiferente do universo. Pedro volta a olhar para a janela, a chuva continua firme e vitoriosa lá fora, mas nada mudou dentro do apartamento nem dentro de Pedro.

Pedro vai dormir para enganar o tempo e a si mesmo, ele abre a janela, a chuva ainda forte atinge seu corpo, seus pés descalços sentem a água gelada das poças que alagam a marquise do prédio, levanta o rosto e abre a boca para sentir o gosto da chuva, Pedro sorri porque sabe que a chuva não julga nada nem ninguém, ela só cai, cai e lava a alma do bom e do ruim, do solitário e do descolado da turma, do engomado de guarda-chuva e do sem teto no chão. Pedro voa em direção contrária das nuvens negras de chuva que cobrem o céu e chega ao chão no mesmo instante em que a última gota de chuva cai, no mesmo instante que se vê o primeiro raio de sol, no mesmo instante em que se lembra de que não é um pássaro, no mesmo instante que o chão lhe recebe com toda sua dureza, solidão e indiferença.

Pedro, feito carpete estendido, feito mancha de vinho no concreto molhado, feito mancha de cigarro na quina da calçada, faz colorir a rua com círculos concêntricos de um vermelho vivo, só que não!

1 Comment


Cafe e outras Palavras
Cafe e outras Palavras
Mar 21, 2020

Pedro, essa chuvinha em Macondo não é nada.

Saudações Magrão.

Roberto Prado.

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