O moço na outra calçada – alexandre costa
- Cafe e outras Palavras
- 3 de mar. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 4 de mar. de 2020

Melhor seria para Iris que o espaço que separava seu amor por Rubio fosse apenas a rua de paralelepípedos entre sua floricultura e a quitanda, mas não era. Melhor seria, porque para ela – tão escassa de beleza – ter alguém era acontecimento raro em sua vida amorosa. E não era só isso! Todo seu arcabouço sentimental a tornava uma mulher improvável para o amor. Melhor seria ter nascido homem, mas Iris era mulher e, como mulher, necessitava do amor que se pode dispor – de um amor que fosse para os dois – porque ela, ela mesma era sua própria carência.
O amor deveria vir com todos os acessórios, um amor sem promoções, inteiro, cheio, suficiente para uma vida inteira. Rubio, homem à sua maneira, dispunha apenas de seu conhecimento por verduras, frutas e legumes, o amor lhe passava longe. Fora criado numa família de seis homens pelo pai e pelos irmãos mais velhos, logo que a mãe morreu em seu parto. Íris conhecia todas as flores da loja, tinha carinho especial por algumas. Queria mesmo ser uma delas. Queria ser cultivada por alguém, acarinhada. Rubio entendia pouca coisa ou nada sobre as flores que Íris amava. Em particular aos dois, apenas o colher flores e frutos os tornava iguais em alguma coisa. Para ela – desprovida também de coragem -, o outro lado da rua ficava a uma distância intransponível. Pior que isso, Rubio se mantinha a uma distância ainda maior, pois ignorava a existência de Íris. Rubio não sabia o verdadeiro significado do amor. Sabia sim do amor pelas suas verduras e frutas. Então aconteceu que Íris tinha uma necessidade, e ela reconheceu em si uma urgência que ainda não conhecia, e dessa urgência nasceu uma coragem que até aquele momento não lhe pertencia. Talvez fosse porque em toda sua vida desejasse escapar pela própria boca e abandonar-se para sempre. Isso lhe apertava o peito e comprimia o coração entre a apatia e a covardia. Mas ela não era covarde!, a vida nunca lhe dera essa oportunidade. Tão escassa era sua beleza que a necessidade de Íris crescia a cada dia. Não havia mais como adiar a viagem que faria até o outro lado da rua.
Do outro lado, um outro universo, o universo das possibilidades, o universo dos sentidos e sentimentos nunca antes experimentados por ela. O universo habitado por Rubio era como um planeta habitado por um único ser. Era este mundo que Íris sonhava habitar, mas ela também tinha medo porque não conhecia a verdadeira coragem, aquela que motiva e alimenta. Ela era escassa disso também. Rubio, em sua pequena condição, tinha consciência de sua existência: fora ensinado desde pequeno a fazer algumas escolhas. As escolhas nos dão a noção de que estamos vivos. Essa era a diferença fundamental entre os dois. Mas Rubio nunca fora ensinado a escolher entre amar uma mulher ou não. Amar, na verdade, era uma palavra que ele conheceu no meio da plantação e que dizia respeito apenas à família e ao trabalho. Aos olhos de Íris, a viagem fora longa e a chegada carregada de ansiedades e vergonhas. Neste lado do universo ficava Rubio – que a receberia sem notar sua verdadeira intenção. Mas a intenção não era dela. Ela até achava que era! Era a intenção do amor que se manifestava. Agora também a necessidade de Íris não existia mais, desapareceu envolta em sua escassez. Mas houve um momento em que seus olhos e os olhos de Rubio cruzaram-se entre a calmaria da chegada e o soluço da surpresa. E para os dois era estranha a intenção daquele olhar, uma intenção nova que os aprisionou, intenção que gritava em seus ouvidos, mas escassos não podiam ouvir o chamado. E agora, se lá não tinham as flores que Iris cultivava?, onde se esconderia?, não podia perceber seu estado, a vulnerabilidade de sua condição! E Rubio descobriria que havia algo mais a aprender. Escolher, às vezes, não é uma questão de escolha. E nos dois manifestou-se uma vontade sem se saber. Ela e ele escassos! E essa falta preenchia os dois com motivos verdadeiros..
A rua se estreitou, a distância se comprimiu no espaço de um olhar, de uma intenção, na falta de escolha, na escassez preenchida com este novo sentimento. Agora um novo mundo habitava os dois, e melhor seria para Íris e Rubio nascidos do amor, mas vividos na falta dele, que as flores e as verduras se plantassem em um único terreno. Melhor seria que fossem habitantes de um mesmo planeta, melhor seria que fossem um só, mas a escassez de ambos os mantinha à margem desse ideal. Ele era o moço na outra calçada. Um mito, um desejo alimentado. Ela era a escassez, essa matéria negra e invisível, gravitacionalmente densa que os mantinha afastados, embora hoje unidos momentaneamente por uma tênue necessidade desconhecida. Talvez tudo não passasse de um engano. Uma constrangedora articulação do destino. Os olhares agora perdidos entre legumes e dúvidas se despediram sem dizer adeus. Não fosse a distância medida pela rua de paralelepípedos, eles provavelmente se amariam um dia. Não fosse o trabalho no campo que os mantinham ocupados, eles se amariam um dia. Não fosse a carência do amor ou de seu desconhecimento, os dois se amariam um dia. Rubio voltou-se para as cestas de verduras desarrumadas. Íris lembrou-se dos arranjos para fazer, lembrou-se das flores que a mantinham à margem de seus sentimentos, lembrou-se principalmente de sua escassez. Lembrou-se também que era mulher e, como mulher, necessitava do amor que se pode dispor, um amor sem promoções – inteiro, cheio, suficiente para uma vida inteira…
Muito vindo aos comentários Casamacau!
Sensível. Escrito com primor.
Clap clap clap...
Parafraseando George Harrison: É só dar um tempo que
O amor vem prá cada um!
Roberto Prado