O segredo: alexandre costa
- Cafe e outras Palavras
- 21 de set. de 2020
- 5 min de leitura

O tempo passou e o segredo de uma vida inteira fora revelado no enterro de Algenita. Carregava aquela paixão não só no coração, mas também nos olhos e nos gestos, amava nas intenções escancaradas quando a encontrava na casa do irmão, a amava sozinha em seu quarto, amava-a no banho, nas vinte e quatro horas de sua existência. Fazia de tudo para chamar a atenção de Algenita e ao mesmo tempo a de mais ninguém, sentia-se culpada por esse sentimento fora de contexto, não para ela, mas para todos com quem convivia. Sabia que a família não aceitaria, mas não só a família como a sociedade também. Eram tempos difíceis, pode-se dizer assim.
Algenita, esposa do irmão mais velho, nunca lhe retribuiu com o mesmo sentimento, mas sabia que Catarina sentia algo por ela. Sabia não, tinha certeza e essa certeza a deixava enjoada, sem saída, e a todo custo evitava estar perto quando Catarina dava as caras em sua casa.
Até quando?, se indagava. Até quando iria aguentar esse amor não correspondido? Sabia que se o irmão descobrisse, destruiria seu casamento. Qualquer outro que soubesse nunca a apoiaria. Quem apoiaria uma lésbica em mil novecentos e vinte e quatro?, ela se perguntava. E tinha sempre a mesma resposta estampada na cara da sociedade em que vivia.
Esse amor profano começara há alguns anos, logo depois que o irmão se casou. No começo eram amigas, feito unha e carne, trocavam confidências e segredos do casamento. Eram essas histórias que alimentavam Catarina, sua imaginação, sua vontade cada vez mais virando desejo. Desejos esses, escondidos atrás de uma educação severa dos pais, mas que aos poucos foi se dissipando até virar uma lembrança nefasta dentro de si e que transformara em combustível para sua revolta dos padrões vigentes.
Catarina se descobrira não muito cedo, quando ainda estava na faculdade de direito. Lá percebeu que se sentia diferente perto das meninas e que se enjoava fácil dos rapazes. Era algo novo, tão novo que a confundia às vezes, mas que com o tempo entendeu que fazia parte do que ela era.
E houve a época em que toda a família lhe exigia um namorado e Catarina viu-se obrigada a atender os padrões e a família, julgando-se incapaz, às vezes, de vencer o que ela sabia ser injusto.
Conheceu o Dagoberto, o Luiz Vicente, depois o Arthur, mas todos eles lhe davam asco. Só se sentiu verdadeiramente bem no dia em que beijou Lívia.
Depois disso, o casamento do irmão, a cunhada, e tudo que ela era aflorou de uma única vez, Catarina sabia por quais coisas valia a pena lutar. Mas ainda não sabia como o amor poderia machucar.
Assim, o tempo passou e o segredo nasceu e cresceu dentro de Catarina, fez ninho em seu coração e uma vontade que crescia no estômago e descia até os pés, mas ao mesmo tempo enquanto crescia esse amor, mais ela percebia que ele só a afastava cada vez mais de Algenita. Com o tempo aquele amor transformou-se em sofrimento e dor. Desistiu de tudo porque queria tudo, e a totalidade se fez maior do que ela própria. Fugiu de casa, traiu seus desejos e princípios, conheceu Evandro e mesmo nunca sentindo nada por ele, casaram-se.
Catarina chegou de surpresa no velório, soube da notícia no obituário do jornal da daquela manhã. Os anos que se passaram não a deixaram menos amarga, podia-se ver isto em seu rosto agora mais enrugado, em seus olhos mais enevoados e tristes do que nunca. Para todos sim, os anos passaram com dureza, mas para Catarina o tempo parecia ter dobrado e lhe virado do avesso, seu coração ainda batia, mas não sabia o motivo.
Ana e Álvaro, seus dois filhos encostaram a cadeira de rodas bem próximo ao caixão de Algenita, ela parecia não ter envelhecido.
Talvez porque quisesse isso, o que Catarina via era o sorriso largo por qual sempre foi apaixonada. Tudo em Algenita estava como ela viu pela última vez, e não se esquecera da última conversa que tiveram no quarto, nem quando se abraçaram para comemorar o primeiro ano de casamento com o irmão, e não se esqueceu até hoje do que sentiu em todo seu corpo quando a abraçou.
Resistiu, ali em frente ao seu amor o quanto pode, mas não estava preparada para o que via, caiu em um choro profundo e foi amparada pelos filhos e pelo irmão.
A vida nunca teve muito sentido para Catarina, vivia seus dias sobrevivendo a cada um deles como se fossem os últimos, cuidava dos filhos que com o tempo aprendeu a amar, e talvez isto tenha ajudado a não desistir de tudo. Nem quando o marido faleceu há dez anos pôde se sentir livre. Mas hoje ela estava decidida a mudar tudo isso, não haveria mais segredos nem barreiras para calar seu coração.
Ela a amava e ponto final, e não a odiava por não ser amada também, ao contrário, lembrava com ternura profunda os seus momentos com Algenita, de quando o irmão foi viajar e ficaram juntas por uma semana. Nada podia ser melhor que isso.
Foi naquela semana que tudo aconteceu dentro dela, foi quando descobriu o que lhe dava sentido e quem dava sentido para sua vida. Mas também teve que suportar a rejeição, e chorou. Com o tempo e as visitas, Algenita foi se afastando cada vez mais até que não havia como dividir o mesmo espaço e a sua vida com a amiga. A cada visita ela se retirava para seu quarto de maneira a não dar motivos para a desconfiança do irmão e do resto da família.
As duas sabiam o que naquela época significava amar alguém do mesmo sexo. Para Catarina aquilo a esmagava e a consumia profundamente, para Algenita aquele amor nunca seria possível por conta de sua orientação sexual.
Catarina sabia, e por saber se consumia a cada dia de sua vida.
Mas, o tempo que guardava aquele segredo morreu no momento em que Algenita se foi, não havia mais motivo para guardar o que precisava ser exposto. Catarina enfim se libertaria de toda dor e solidão que a acompanhou durante sua vida até aquele momento.
E tudo se dissipou. A dor, o medo, a vergonha, só restou a força que ela guardou todo esse tempo e que nem sabia que tinha. Essa força vinha do coração, da boca e do estômago que antes ardia, mas agora ela vibrava inteira.
Júlio agachou-se diante dela choroso à espera de seu conforto e para confortá-la também. Um abraço apertado dissipou toda a distância que os separava e juntou o tempo naquele último segundo sussurrado em seu ouvido. Ele se levantou rapidamente e afastou-se, em seu rosto espanto, dúvida, ceticismo. Júlio elevou seu olhar sobre Catarina enquanto ela o encarava, em seus olhos um pedido de perdão sem necessidade, nas mãos a incerteza de que podia jurar inocência, o estômago contraiu-se, a boca apertou-se para não deixar o coração fugir, aquele não era o momento. Não havia mais segredo para os dois, nem para a família quando Catarina revelou para todos os presentes ali seu verdadeiro amor. E todos se puseram a falar e gesticular, e de repente tudo fazia sentido. Júlio e Catarina amavam a mesma pessoa. E que pessoa era essa que se fazia amar tão intensamente assim? Para os dois agora o que mais importava era o sentimento que sobreviveu a tudo.
Por todos aqueles anos, tudo que parecia não fazer sentido algum, agora estava claro. Aos que lá estavam e escutaram a história, o que aconteceu foi fruto de uma época esquecida e que não há de voltar. Novos tempos virão, novas histórias serão contadas, umas felizes outras tristes, o que importa no final é o amor que sobrevive.
Por um breve momento imperceptível, Júlio sorriu ao olhar Algenita em seu sono eterno, agachou-se novamente, encostou a cabeça no peito de sua irmã e ambos ficaram assim por um longo tempo num abraço apertado.
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