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Dez universos em um paredão cinza claro: roberto feliciano

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 3 de jul. de 2020
  • 2 min de leitura

Um paredão branco. Não. Branco não. Está mais pra cinza claro, que é como chamamos um paredão branco que está gasto pela ação do tempo. Então era uma paredão cinza claro. Mas isso podia ser apenas como meus olhos enxergavam. Meus olhos cinza claros. janela da minha alma cinza escura.

Mas não um simples paredão. Escavados como tanta coisa fica escavada em nossa alma, dez buracos retangulares. Tinha mais, é verdade, mas eu não quis fazer essa simples conta de multiplicação e preferi me atentar apenas a esses dez retângulos exatamente iguais.

Dois deles estavam vazios. Apenas dois buracos negros sem vida aparente. Me imaginei vivendo naqueles universos e a claustrofobia me atingiu em cheio. E agora tudo o que eu não preciso na minha conta nesse mundo é sufocar por imaginar demais.

Desviei os olhos para outro desses espaços. Prateleiras. Algumas. Três ou quatro, que era o que cabia nos limites daquela caverna moderna. Nelas, samambaias (ou gerânios ou petúnias ou profiteroles). Balanço a cabeça confuso. Nome de planta eu nunca decorei. Às vezes pousava um passarinho por lá. Senti uma angústia parecida com solidão. Sempre confundi muito essas duas amigas.

Hora de focar em outra coisa. Prancha de surf, quadro do Che Guevara, um camelo de pelúcia do tamanho de um cachorro de grande porte. A “porta de número quatro” parecia a coisa mais desconexa e sem sentido do mundo. Mas por algum motivo foi a primeira a ganhar minha simpatia. É bom encarar de frente algum caos que não seja o nosso, só pra variar.

Abaixo desse pedacinho de vida eu enxerguei uma mesa, um computador, estante com alguns livros, pilhas de papel, cadernos que pareciam blocos de anotações. Um poster desenhado com uma frase que, a distância, parecia dizer “La Dolce Vita”. Pela mulher loira desenhada no cartaz achei que fosse de alguma marca de perfume. Se bem que também tem o desenho de um cara fumando, o que deixa a possibilidade de ser uma propaganda vintage de cigarros. De qualquer maneira, dane-se. Não tenho saco pra ambientizinho pretensioso.

Só voltei a me interessar por outro desses universos quando vi um mini escorregador, paredes bem coloridas e uma bola gigante (dessas que os filmes nos mostram como bolas de parques de diversões). Também foi o único registro de vida inteligente que vi nesses universos. Uma criança brincava com alguma coisa que estava fora do alcance dos meus olhos. Estava extremamente concentrada pra poder perceber que era observada. Por um momento eu quis me congelar dentro dessa imagem. Por uma fração de segundo eu me lembrei de algo.

Demorou, mas meus olhos foram enfim captados para a próxima cena desse espetáculo. Uma quantidade obscena de equipamentos que a princípio eu não consegui descobrir pra que serviam. Engrenagens que mais pareciam uma máquina de Goldberg bizarra e cromada pronta pra funcionar. Não quis perder meu tempo. Só de olhar pra tudo aquilo fiquei cansado.

Cansado.

Ainda havia mais quatro universos a explorar. Mas meu interesse acabou, como tudo acaba, até mesmo o tédio, a cerveja, a playlist, o amor, o bolo de aniversário ou minha vontade de comprovar que existe vida para além do meu universo ou das janelas sujas do meu apartamento.

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