Mise en place: roberto feliciano
- cafe & outras palavras
- 1 de out. de 2019
- 3 min de leitura

Pensava que era só chegar do trabalho, jogar a bolsa no sofá e a chave em cima da mesa, passar a mão em um pão ou uma maçã, dependendo de qual a obstinação da semana, sentar de frente para a tela em branco e “sentar o dedo” nas teclas gastas do notebook já castigado pela tal da obsolescência programada.
Uma caderneta virgem jazia à sua esquerda na mesa, pedindo por ideias, pedindo por tinta azul fresca.
Podia até ser vermelha, desde que a ponta da caneta (à direita) deslizasse suave ou raivosa trazendo algo de minimamente interessante à luz do dia.
Pousou o celular ao lado, entre a caneta e o mouse. O alerta do aplicativo de idiomas piscou. Estava na hora de uma nova lição ou ele seria rebaixado de divisão. Lembrou de “Les petits chiens lisent”, a última frase da última lição. E ele só conseguia pensar que com cãezinhos que soubessem ler ele estava feito e não precisaria mais procurar pela próxima história, como se ele realmente acreditasse que conseguiria não fazê-lo mais.
Espreguiçou-se demoradamente, como se apenas naquele instante se lembrasse de que o dia foi cansativo.
Aproveitou pra se lembrar da lista de promessas que fez no risca-e-rabisca que só usava pra isso. Lembrou também dos olhos tristes da moça loira que sempre descia no elevador com ele. Olhos cansados, magoados, molhados.
Enquanto se lembrava se levantou pra olhar pros livros na estante. Há tempos dizia para si mesmo que precisava de uma nova. Voltara a frequentar sebos nos últimos meses com a voracidade dos tempos de faculdade, quando não tinha dinheiro nem pra uma edição de bolso em papel jornal. Passou a mão em revista pelas últimas aquisições, como a querer comprovar que estavam mesmo ali. Gostava de ter mais livros por ler do que lidos.
Voltou a se sentar.
A cadeira rangendo. Mas que droga, como é que eu vou escrever assim?, pensou.
Olhou pra tela em branco.
Se não começasse agora, logo arranjaria uma desculpa pra ligar a TV. Então escreveu de um só fôlego, como fazia sempre que a angustia batia em sua porta com um copo de café:
Esse enorme botar a cabeça pesada no travesseiro, sonhando que amanhã vai ser mesmo melhor, com outros caminhos e outras escolhas. Esse buraco gigante no peito que molha meus olhos a todo instante. Essa sensação de que todo mundo tem a fórmula secreta para não ser a mais fodida das criaturas, menos eu. Essa certeza que sou eu o errado e somente eu.
Sentiu nojo.
Já havia sido especialista em autopiedade. Já havia se orgulhado de ser assim e de fazer as pessoas gostarem dele justamente por isso. Mas isso estava fora de questão. No fundo sabia que ainda tinha uma sintonia com o caos emocional de todos os banidos do mundo, mas certas escolhas o haviam levado para outro caminho nos últimos meses.
Com raiva apagou esse arremedo de primeiro parágrafo inteiro. Se a felicidade é contraproducente, o que dizer da apatia congelante? Por quanto tempo ficaria olhando para a tela em branco?
Olhou para a caderneta.
Pegou-a, folheou e constatou que não havia realmente nada ali. Lembrou do amigo:
“Teu problema é que tu fica querendo quantidade. Fica aí com contos, crônicas, resenhas. Escreve logo teu romance, porra”
Vinte e cinco páginas.
Nunca havia ido tão longe em uma história. E embora não tivesse certeza se teria mesmo uma boa história pra contar (achava o argumento batido e tinha acabado de ver um filme com a mesma temática) queria ir em frente.
De repente se lembrou que não tinha tomado os remédios noturnos. As malditas bolinhas brancas. Pegou a caixa de metal onde guardava os comprimidos, os chicletes, as chaves, as pulseiras e sua pedra. Olhou para aquela bagunça e cantarolou “many rivers to cross”.
Sentiu raiva de novo enquanto os olhos se enchiam d’água novamente. Começava mais uma vez a sentir pena de si mesmo, coisa que prometeu nunca mais fazer, na lista feita um pouco mais cedo e em pelo menos outras dez ou quinze oportunidades.
Abriu a geladeira.
Praticamente vazia. Um final de coca-cola, certamente já sem gás, foi a escolha. Pensou que até nisso era patético. Se fosse escrever algum dia sobre esse momento, trocaria a água negra do capitalismo por vodka.
Remédio engolido, música na caixinha de som inofensiva, meio copo de refrigerante em cima da mesa. A caderneta ainda jazia virgem. A caneta tampada. Lembrou de ligar o notebook, que estava quase descarregando, na tomada. Sentou e não mais se importou com a cadeira rangendo. Pensou: “agora que está tudo certo, vou conseguir escrever alguma coisa”.
O foda, ele disse entre dentes, é que mesmo que tudo esteja no lugar, nada está no lugar.
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