Teoria & Prática: roberto feliciano
- Cafe e outras Palavras
- 13 de mar. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 19 de mar. de 2020

Encontraram-se, pois, em uma tarde qualquer de verão levemente outonal, a teoria e a prática.
Caminhavam em sentidos opostos pelo mesmo calçadão destinado aos sabores e dissabores de toda a gente daquela pequena cidade.
A teoria, toda teórica, começou a elucubrar explicações para tudo quanto é coisa entre os dois. E por coisa queira você entender assuntos mil que tinham atrasados entre elas, tal o tempo que não se viam que não discutiam as mesmas pautas.
A prática, bem daquele jeito prático dela, queria temperar o encontro com um café, em um bistrô (que horror) na esquina.
Disse-se cansada.
Elogiou as divagações da amiga, que no fundo continuava a mesma de sempre. Mas com aquele semblante de “não é bem assim que a coisa funciona no fim das contas, querida”.
Sentaram-se. A prática sentia-se confortável na cadeira encostada na parede, mas a teoria estava um tanto quanto incomodada. Parecia que faltava algo. Sentou-se de costas para a rua. Olhou ao redor, os quadros, as pessoas que entravam e saíam apressadas. Mas não falou nada.
Na bolsa carteiro da teoria, Descartes discursava sobre o método auxiliado por duas canetas marca-texto de cores diferentes, um tablet desligado e uma garrafa de água (com gás) pela metade.
Já a prática era acompanhada de perto pel’A Trégua, de Benedetti. Como não tinha, e nem se importava em ter, marcador, uma notinha fiscal do supermercado ficava na página 89. A saber, a compra registrada continha uma garrafa de Coca-Cola (600ml), um chocolate Charge, 150g de provolone e sabão líquido (dia de lavar roupa). Tais coisas estavam impressas na nota e acomodadas no fundo de uma ecobag com logo de uma editora independente descolada.
Entendiam-se como podiam.
Valorizavam-se enquanto indispensáveis uma para a outra em suas concepções de ideias. O cappuccino da teoria e o café sem açúcar da prática. Os anos de estudo de uma, o trabalho atrás do balcão da loja da família de outra. Dedos batendo na mesa, marcando o compasso da canção pop que tocava na rádio. Essas eram as duas. Amizade doída, doida. Relação íntima, intimista.
A teoria começou a gostar do ambiente. Não conhecia, passava sempre de cabeça baixa por ali, ouvindo uma música qualquer, quase como ruído enquanto pensava no que havia lido e no que ainda ia ler. A prática lhe disse para aparecer quando quisesse, pois quase todo dia o café amargo lhe era servido ali. Mas que agora precisava ir embora, tinha coisas a resolver.
Despediram-se, pois, sem nada muito importante dito ou combinado.
Era começo de noite.
Talvez até mesmo esse encontro fortuito não achasse motivo de ser narrado, de ganhar lugar na história. Talvez. Jamais saberemos, já que agora estava narrado.
A teoria praticamente não falou nada de sua vida, apenas sobre ideias que iam e vinham como ondas que nunca param de chegar na beira do mar. Teoricamente, era a prática que deveria fazer o próximo movimento, pra que essas duas almas tão perturbadas, cada uma a seu jeito, se encontrassem novamente, para talvez poder gerar algum relato mais digno de nota.
Esse conto é panorâmico, dá prá entender?
R. Fedler.