Translação: roberto feliciano
- cafe & outras palavras
- 20 de ago. de 2019
- 3 min de leitura

(A estrutura principal desse texto foi escrita há mais ou menos 17 anos. Tiro ele dos escombros da memória porque penso que foi um dos poucos que sobreviveu ao tempo e à minha autocrítica implacável. E é óbvio que mudei bastante coisa para que ele pudesse ver a luz do dia. Enfim...)
Ela dançava. Dançava de um jeito que me fazia esquecer. Balançava a cabeça e os cabelos de maneira frenética enquanto o corpo deslizava com elegância de um lado para o outro ao som da música. Contradição pura até nos mínimos gestos. O copo de cerveja na mão direita, só meio cheio. O corpo suado, o suor escorrendo pelas costas nuas que eu só via a cada giro que ela dava em seu próprio eixo.
Há quanto tempo eu a conhecia? Não saberia precisar ali, também eu com meu copo de cerveja meio cheio na mão, só que na esquerda. Era tempo suficiente para aquela dança me fazer esquecer o salário baixo, o trabalho chato, a vida tediosa, o preço do ônibus. Tempo suficiente para que eu mesmo ensaiasse uns passos desajeitados só pra não ficar pra trás de todos aqueles carinhas bonitos que, além de tudo, pareciam saber exatamente o que estavam fazendo.
Eu não parecia saber o que estava fazendo.
E não sabia mesmo.
Mas afinal, ela estava comigo. Tinha topado ir comigo. E eu corro risco de ser pretensioso achando que ela estava até gostando de estar comigo. E tudo isso se passava apenas na minha cabeça enquanto os pés dela conduziam o ritmo da vida na Terra durante aqueles 3m49s de Modern Love, do Bowie.
Foi meio que por gestos, de forma entrecortada e atrapalhada. Só porque talvez seja a coisa mais estúpida do mundo declarações no meio de uma balada, no meio de Modern Love, do Bowie.
- Eu acho...
Ela girou o corpo, jogou os cabelos para o lado mais uma vez e me olhou rindo, apertando os olhinhos daquele jeito que fazia parecer que todo o rosto dela sorria. Enquanto eu apontava pra mim mesmo do jeito mais idiota do mundo.
- Que eu estou...
Agora ela está certamente achando que eu vou falar alguma coisa engraçada, mesmo que a minha cara fosse provavelmente de pânico. Agora certamente não daria pra voltar atrás. O pé foi até o fundo no acelerador.
- Completamente...
Música alta, gente esbarrando em mim e nela. Ficamos ainda mais próximos. À nossa esquerda um babaca olha com olhar superior, certamente pensando que quando a bonitona der um fora no fracassado aqui vai ser a hora dele “chegar” nela.
- Apaixonado...
Ela fechou a cara. Pronto. Parece agora que o mundo inteiro parou para acompanhar o desfecho da novela. Ela parou de dançar e ainda faltavam mais ou menos de 25 a 30 segundos de música.
- Por você!
Eu pude sentir o momento exato em que seu queixo caiu. Eu senti a resposta vindo. O babaca ao lado sorriu vitorioso, mas saiu de perto. Eu me preparei para o que quer que ela dissesse. Me preparei pra tudo, ou para perder tudo, inclusive a nossa amizade.
- Isso é muito injusto,
Renato!
Disse só isso e saiu rápido.
No instante seguinte, como se estivéssemos em alguma comédia romântica de baixo orçamento, estávamos sentados em um desses sofás encardidos que toda casa noturna tem no espaço para fumantes. Eu sentia que precisava dizer alguma coisa. Ela olhava o teto com os olhos fixos. Parecia que ficaria calada até o fim dos tempos.
- Em minha defesa eu não queria isso pra mim.
Ela deu risada, me olhou de forma terna, apertou minha mão e se levantou. Não sei se para ir ao banheiro ou se pra ir embora. Antes de passar pela porta que a levaria de volta à pista, olhou pra trás e sorriu mais uma vez. Talvez estivesse indo só pegar mais uma cerveja.
Talvez.
Sei que fiquei com medo de me levantar e ir atrás. Dependendo de qual fosse a resposta e a conclusão a que ela chegasse, eu poderia não estar preparado.
O Roberto Feliciano vai curtir muito seu comentário!
Obrigado!
volte mais vezes.
acredito que a melhor forma de descrever o que vc escreve é com um: PUTA QUE PARIU!
eu me senti serena e curiosa enquanto lia. não sei se isso entra como um elogio, mas é como me sinto.
parabéns, roberto.
Linda história!