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A briga: roberto prado

  • Foto do escritor: cafe & outras palavras
    cafe & outras palavras
  • 1 de ago. de 2019
  • 2 min de leitura

Atualizado: 2 de ago. de 2019


Brigaram.

- Aliás, brigavam sempre, todos os dias - diziam os vizinhos.

- Batem boca, quebram copos, arrastam os móveis (para quê? vai-se saber...) xingam-se, mas no dia seguinte voltam às boas.

Mas dessa vez parece que a coisa foi mais séria, segundo testemunho de dois vizinhos a coisa foi além da agressão verbal comum.

Começou assim, alguém gritou:

- Gordo! Você é um gordo relaxado...

Foi quando a coisa ficou feia de vez.

Escutou-se choro seguido de um preocupante silêncio logo dissipado por um:

- Eu vou cortar meus pulsos. Eu vou morrer. É isso que você quer? Então é isso que eu vou fazer. Vou me matar na sua frente. Nunca mais você vai esquecer essa cena. Nem o seu amigo psicanalista vai conseguir te ajudar!

Silêncio mais preocupante.

- Não dizer nada? Você entendeu? Eu vou me matar. Morrer. “Eme” “"O” “Erre” “Erre” “Ê” “Erre”. Morrer!

Segue o barulho de talheres sendo jogados no chão.

Choro agora convulsivo seguido de soluços holliwoodyanos.

-Olhe estou com faca na mão. Vou cortar os pulsos e sangue vai manchar e estragar seu tão precioso tapetinho persa presente do “seu psicanalista”.

Para espanto geral dos vizinhos que já se encontravam de ouvidos colados à porta, uma voz aguda de desespero responde:

- O tapete não! O tapete não!

- Sei bem o amor e atenção que você dispensa a esse pedaço de pano, de pano sujo e velho. Essa lembrancinha do seu amiguinho... – chora e chora e chora...

Os vizinhos riam baixinho.

- Por favor, se você quer mesmo morrer, está decido a dar um fim à sua vida patética e gorda, dê. Mas antes me permita tirar o tapete da sala - diz a voz aguda e metálica desprovida de qualquer sentimento humano.

- Foi nessa hora que percebemos que a coisa era realmente muito séria mesmo – disse Dona Eufrásia Bento, moradora do 331 há trinta e dois anos.

Voltaram a gritar dentro apartamento.

- Eu te odeio-te odeio-te odeio... – chorava o gordo. Odeio você e esse seu tapete persa. Não posso nem morrer em cima dele... – chorava de dar dó.

Só se ouvia a voz do gordo.

- Você vai me deixar morrer? Não vai falar nada? Não vai me dissuadir de cortar os pulsos?

- Não! – respondia a voz aguda e metálica. Fria como um vento de inverno. – Não. Não direi nada. Gordo. Você é gordo, gordo e gordo. Enquanto você não aceitar que é gordo não espere nada de mim. Gordo e untuoso!

Os vizinhos ouviram aquele último “gordo e untuoso” com se fosse um tapa na cara.

- Imagine o que o pobre gordo sentiu então. – Perguntou retoricamente Dona Cinarinha, irmã de Dona Eufrásia, moradora do 331 há trinta anos, que mudou para lá logo depois de ficar viúva. – Como o Gordo chorou, chorou de partir nosso coração.

- Foi então que ouvimos – completou Dona Eufrásia Bento arfando asmática – o barulho!

- Sim, sim, sim – falava eufórica Dona Cinarinha balançando a cabeça – Parece que o Gordo não conseguindo angariar qualquer simpatia quanto a sua férrea decisão de cortar os pulsos, gritou:

- Adeus!

E todas em uníssono, como que ensaiado à exaustão, falaram:

- Pulou da janela!

- Que crueldade! – soluçava Dona Cinarinha, emocionada - o corpo ainda caía, e o namorado do gordo já telefonava para o psicanalista...

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