A noite era a pior parte: alice bispo
- cafe & outras palavras
- 14 de jun. de 2019
- 8 min de leitura

1
Tudo na vida me encantava. Eu saberia te dar motivos para viver e morrer. Sei das dores, daquelas doloridas demais para explicar. Sei dos sabores, dos doces, das sensações; sei da vida. E era só isso que me interessava. Até não valer mais a pena pensar. Até ficar opaco, sem gosto. E eu não precisava me interessar por nada, porque não tinha valor. Não precisava falar, porque ninguém me escutava. E, aos poucos, fui desconhecendo minha voz. E de pouquinho em pouquinho, fui me perdendo, me encolhendo; A vida já não importava e nem era preciso dar motivos. A realidade era tão ingrata, a minha vida tão muda, que comecei a delirar. E fiquei cada vez mais sozinha. E cada vez mais dependente. E cada vez mais eu vivia o nada.
***
São dez horas. Quando tudo começa. Quando as luzes acendem. A poeira abaixa, a bebida é aberta; As meninas ficam na pista, ao lado do bar. Cinco mesas de quatro lugares cercam o círculo. Cercam o puteiro. Não. "Estabelecimento", diria a cafetina aos parentes. E nós? Somos garçonetes. E os quartos? São da pousada, "a minha pousada, ora", sua voz ecoa na minha cabeça. E os homens? Por que há tantos homens nos quartos? “Tudo peão", ela diria, "eles vêm pra cá do norte, consegue serviço na firma e têm que ter lugar pra dormir, daí que eu tive a ideia dos quartos, porque a maioria desses homens não tem como pagar aluguel".
Essa era a explicação que todos engoliam. Todos que fechavam os olhos. Que queriam não entender, porque a superficialidade é mais cômoda, mais doce. Sabotar a própria consciência para que não haja compreensão da falta de humanidade. Para que se siga a lida diária, sufocante, sem mudança.
Somente quando se paga na carne é que se sabe o sofrimento do espírito. A minha tristeza sucumbiu à indiferença no terceiro programa. O sexo era banal. Era o meu meio de obter sustento e pagar as coisas dos meus filhos. Três meninos de pais diferentes. Os dois últimos fruto de um caso com um cliente.
Ele me falava que tinha se apaixonado por mim de verdade e que me tiraria dali. Eu acreditei. Ele fugiu com o dinheiro que eu tinha juntado em dois anos trabalhando à noite. Fugiu com a minha liberdade e me deixara duas bocas para sustentar.
Depois disso, homem, nunca mais. Pelo menos não emocionalmente.
Clientes são homens sem rosto para mim. São como peças, que eu preciso apertar, todos os dias. Só assim não morro de fome.
Mas eu era diferente, era o que me falavam na escola. Eu era inteligente, sabia escrever, não copiava nada. Os professores me davam conselhos todos os dias "saia daqui, Rita, aqui não é lugar pra você. Tenta São Paulo, lá tem muita oportunidade. Você poderia estudar conseguir um trabalho diferente, trabalho leve, de quem tem estudo, entende?" Todos os dias. E eu entendia, entendia de verdade. E isso ficou na minha cabeça. São Paulo. O velho mito de mudança, de esperança.
Com dezesseis anos eu me mudei. Fui pra São Paulo. Pra terra dos sonhos, das oportunidades. Cheguei sem parentes, amigos, colegas, sem nada; Viajei três dias num ônibus do nordeste até o sudeste pra trabalhar em escritório. Bem, a única semelhança com um escritório talvez fossem as mesas. Mas essas têm cadeiras, que têm pessoas, que precisam ser servidas. E eu servia.
Fiquei no bar do Cláudio por três anos, quando cansei do assédio. "Tu acha que é fácil, sua caipira? Acha que vai sair daqui pra trabalhar com doutor? Aqui é São Paulo. Vê se acorda pra vida e valoriza essa merda de emprego que eu te dei. Sem mim você é nada. Tinha que me agradecer por te pagar as contas, isso sim", era o que ele falava, sempre. E eu abaixava a cabeça, toda vez.
Até que um dia ele bebeu demais. E eu já estava com raiva acumulada até o talo. Ele chegou perto e eu lancei uma garrafa de uísque em sua cabeça. Um filete de sangue escorreu e ele caiu estupidamente no chão, como uma manga podre. Podre ele era, isso sim.
Depois, saí correndo com uma mochila nas costas. Roupas, sapatos, tudo que deu pra pegar no desespero. Saí pra rua, sem lugar pra ficar, sem comida, sem emprego. Saí sozinha, de corpo e alma.
Meu medo era ser estuprada por algum drogado, ou ser assaltada e perder as poucas coisas que ainda eram minhas. Mas eu não podia esperar redenção ou perdão daquele cara. Meu maior medo era de vingança. Que ele me espancasse até a morte e depois me descartasse em qualquer beco. Sem documento, sem casa, sem família. Eu ia morrer sem que ninguém soubesse que um dia existi. Isso me dava mais medo que a rua. Então, fui embora.
A primeira noite foi a pior. O dia nunca amanhecia, minha barriga se contorcia de tanta fome e quase não conseguia manter os olhos abertos, atentos. Sentia-me exausta, de corpo e mente. Precisava descansar, mas precisava estar desperta, para que visse o menor sinal de perigo.
Quando o dia começou a dar as caras e o primeiro sinal de sol vir no meu rosto, eu apaguei. De verdade. Sentei numa praça qualquer, longe, muito longe do bar, e apaguei.
Acordei com um cheiro horrível de urina na cara. Era um bêbado que me cutucava. "Esse banco aí é meu, menina. Vai procurar um pra você, anda, cai fora".
Levantei assustada e fui embora. A mochila começava a pesar demais e tive que jogar alguns sapatos fora. Estava com um tênis e não me importei se uma ou outra sandália ficaria pelo caminho. Era melhor levar pouca coisa, mas que fosse o essencial, do que entortar minha coluna por umas sandálias.
Caminhei o dia todo, tendo em mente que era melhor ir para muito longe de São Paulo. Era inevitável pensar em João Pessoa. As lembranças de casa, de meu pai. Minha mãe que se fora tão cedo... Meus irmãos, tudo. Nunca gostei de fantasias, mas nesses momentos imaginava uma família perfeita, harmônica, cheia de cachorros e bichos... Imaginava minha mãe cheia de vida, meu pai delicado, conversador, igual aos homens da televisão; meus irmãos, pestinhas inocentes, que só queriam saber de jogar bola; e eu... eu era linda, cabelos longos, sedosos, cheia de amigas, um namorado...
Mas aí a barriga roncava, a garganta engolia em seco, árida. As bolhas nos pés estouravam e a agonia crescia. O mundo das ruas, do abandono, da miséria era o que estava a minha frente; o medo, silencioso e esperto, me afligia em todos os momentos do dia.
Eu tive que me virar. E com uma semana nas ruas, comendo restos do lixo e de marmitas, resolvi me vender.
Na primeira vez que pensei isso, tratei logo de desviar a atenção, horrorizada. Mas, quando pegava comida podre, voltava com tudo. "Uma saída", era como via; na verdade, a única saída.
2
"Então, menina, que que cê quer aqui? Tem pai, não? Família, qualquer coisa... cê é muito nova pra essa vida. E tem outra, duvido que já trepou com alguém, com essa cara de sonsa, é virgem, certeza". Sheila. A primeira cafetina que conheci. Suas palavras, ditas ironicamente, me soaram como um sim. O primeiro sim não dito que ouvira até então.
Existe uma regra não escrita, uma ordem, um mantra, como quiser chamar; A noite é mais silenciosa, é mais intuitiva e, portanto, mais permissiva que o dia. O que quero dizer é que eles não se importam com sua família, seus parentes, sua vida. O que você foi antes, o que te levou a essa vida de merda, isso não importa. O que importa é que você tem um corpo; esse corpo é magro, esguio, dentro do padrão; uma moeda dourada, você é essa moeda dourada que chegou num dia de sorte num puteiro, no deles, e que será, sempre, invariavelmente, servida como intocada, virgem. Na bandeja do jantar, fria, como uma sobremesa. Até murchar, encolher, e ser, somente, a entrada.
Não precisei dizer nada, ela viu o meu estado, viu que eu estava faminta, e me deixou ficar, contanto que não usasse nada na hora do programa. Fiquei pensando "o quê?, usar o quê?".
"Aqui é o quarto que você vai dormir", Sheila aponta para uma beliche, com colchonetes finos e um cobertor na ponta. O quarto é um quadrado de cimento batido que fede a mofo. Lar doce lar. "Se tu usar, usa aqui. A cama de baixo é da Bia, agora ela tá de serviço, mais tarde cê vai conhecer ela. No corredor tem mais oito quarto, igual esse. Cada um com dois beliches, esse é o único com um só, cê teve sorte. Banheiro só tem um, no fim do corredor. Tuas coisa é tu que cuida. Aqui não tem essa de 'é meu', se uma das menina pegar, é dela, fica esperta. De resto, maquiagem, calcinha, absorvente, é tudo você que compra. Droga também, lógico. É isso. Se tiver confusa com alguma coisa, pergunta pras menina. Eu fico no balcão lá da frente do bar, dez horas começa a noite, as menina vão te levar pra boate. Quer falar alguma coisa?" Fico em silêncio e ela vai embora, rindo debochada e cantarolando alguma coisa.
Olho ao redor do quarto, aquele quadrado abafado, com o beliche no canto e uma cômoda do lado. Coloco minha mochila na cama de cima e pego roupas limpas. Finalmente banho.
O banheiro é um quadrado de cimento com uns poucos azulejos, uma privada no canto e um chuveiro no canto oposto. Não tem pia, a porta é de madeira podre e não tem maçaneta. Olho ao redor procurando um sabonete e encontro um resto do que seria um sabonete. Dá pro gasto. Tomo um banho rápido, com medo de alguém abrir a porta. Visto minhas roupas com o corpo molhado. Na correria, não tive como pegar quase nada.
No corredor, passo de cabeça baixa, com medo de alguém reparar que existe uma novata. As portas de alguns quartos estão semiabertas e algumas parecem dormir. Em outros ouço gemidos baixos, quase sussurros... Parecem uivos de prazer, mas com um soar triste, incoerente. Acho que estão "usando".
Entro no quarto assustada e me deparo com uma mulher deitada no colchão de baixo. Parece concentrada demais em alguma coisa que não consigo entender o que é. Aos poucos ela vai ficando relaxada, mas em nenhum momento se deu conta que eu estava ali, observando-a atenta. Fiquei ansiosa para ver o que viria a seguir, mas nada aconteceu. A mulher ainda estava com a expressão vazia, olhava sem foco para qualquer lugar. Cansei daquilo e me fui para minha cama.
Não sabia que horas eram, mas presumi que já estava quase na hora. A hora que eu não queria que chegasse, mas precisava que chegasse. Precisava comer. Minha barriga estava me matando e já não conseguia me concentrar em nada, nem nos gemidos dos outros quartos. A mulher da cama de baixo não emitia som algum e eu só pedia a deus para que ela não tivesse morrido. Que continuasse viva para fazer o que quer que estivesse fazendo.
Numa distração simples, me deixei fechar os olhos um instante, tentando relaxar e me tirar do mood sentinela que estava há uma semana. A mulher da cama de baixo acordou e me cutucou. Levei um pequeno susto e ela me sussurrou rouca: "eles sabem de você, viu?, todos eles. e mais tarde vão pegar você, como me pegaram. mas não fala pra ninguém, porque é perigoso. eu falo pra tu porque ninguém me avisou antes.", ela faz uma pausa, olha para o lado e eu tento prender a respiração para não sentir aquele hálito azedo na cara de novo. Se passou uns cinco minutos dela olhando para o lado, catatônica. A minha espera me agoniava. De repente, como se tivesse esquecido porque esperava, ela saiu. Na porta, se virou para mim uma última vez: "eu era bonita como você." Depois, saiu tonta pelo corredor.
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