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Sobre o tempo, a identidade e a memória: alice bispo

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 27 de fev. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 28 de fev. de 2020


Há alguns minutos eu pensava sobre identidade e isso me deu impulso para escrever sobre identidade.

E tempo.

E memória.

E como todas essas coisas podem ser enganadas, persuadidas, apagadas ou esquecidas. Todas elas mantendo um peso sólido em nossa consciência. Todas elas nos puxando. Por toda a vida.

O medo de perder a identidade, perder tempo, memórias... O medo de não se reconhecer. O medo de ter medo. E como tudo isso é um freio invisível, que não tem real importância diante da imensidão que é a vida, mas ainda nos perturba e assusta, todos os dias. E isso me deixa muito triste. Mas muito pensativa, porque o que me faz triste me faz reflexiva. O que eu reflito, eu mudo ou eu me alieno. Mas dessa vez é diferente. Eu não quero mudar. Porque parece que perder o medo de se perder é perder-se do mesmo jeito. E toda essa confusão gera mais medo e insegurança, que eu acho que me define. Se eu perder, me perco. Para mim me reconhecer significa existir como eu quero. Significa satisfação em ser quem eu sou. Mesmo com as falhas, que são tantas.

Daqui uns dois meses eu faço aniversário. Mais um ano. Eu me sinto no começo, mas muito cansada. Como se tivesse queimado a largada ao nascer e tivesse vivido antes.

Sinto-me velha.

Sinto-me com remorsos que não vivi.

Essa ansiedade sempre convivendo comigo.

Comendo comigo.

Instigando-me.

Persuadindo-me, de novo. Eu me sinto envergonhada pela dor e pela dor que causei nos outros. Sinto-me machucada, exposta, procurando cicatrizar, o mais rápido possível. Eu quero me sentir eu. E o tempo continua passando e com ele as minhas memórias vão desaparecendo. Meus costumes mudando, meus passos mais lentos, as fotos mais enrugadas e amarelas.

Eu me sinto caindo...

Cada vez mais longe de mim mesma enquanto alcanço a maturidade dos aniversários e mais aniversários. Na ânsia por presentes, reconhecimento, dinheiro. Me sinto caindo. Mais triste, mais confusa, mais cansada.

Olho para frente, para as estradas.

Todos os dias me levanto, com a certeza de ser grata por isso. Todos os dias tomo café, escovo os dentes, me deito, me descanso, me alimento. Com a certeza de que o tempo está me ultrapassando. Meus conhecimentos estão arquivados, inutilizados, amputados de mim pela competência profissional. Meus sonhos anulados, trancados. Sonhos de areia, de papel. Facilmente descartados e aniquilados, estão me encarando. E eu os encaro de volta. É um bom desconhecimento.

Eu me desconheço.

Outro dia de memórias e nostalgias. Eu me lembro de brincar, de me ralar, de meus amigos, todos sujos, famintos, sorrindo, me encarando. Eu os vejo indo embora. Um a um. Hoje somos rostos conhecidos que já se disseram amigos. E eu tenho medo. Do tempo que está nos consumindo. Da memória aos poucos, como uma lâmpada velha, se apagando.

Eu me sinto sozinha.

O meu café costumava ser mais doce que isso. Minhas roupas mais longas, assim como meus cabelos. Meus pés estão calejados, minha voz mais madura, meu olhar cansado, minha disposição quase nada. Eu me sento em qualquer lugar. Minha comida virou legumes. Os doces já não dão satisfação. Mas ainda alguns de teimosia. Eu me sento e olho e choro. Porque eu reconheço as pessoas, mas elas não se lembram.

Estou no ponto de ônibus.

Meus olhos no chão, a vergonha de ser quem eu sou não anulou a coragem de me concretizar. Os olhares: vazios.

Bem vindo.

Bem vinda.

E o tempo: o meu tempo é ingrato e pessimista. Não me admite ser preciosa, lenta, observadora. O meu tempo urge. Me espanta, me trata como animal. A memória está se dissipando com os anos. Novos laços se formando e eu vivendo dos antigos. A minha imaginação cada vez mais fraca, mais opaca. Sento-me em todos os lugares porque sempre estou cansada.

De tudo.

Cansada da procura incessante por ocupação. Cansada do medo de ser desocupada, cansada de pensar tanto. Cansada de correr. Eu me movo, eu me sento em todos os malditos lugares em que eu vou.

Estou sozinha e meu último pesadelo foi agradável. Finalmente tive coragem: e daí, correndo, eu caí, meu tempo se foi.

Eu parei.

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