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A promessa de Carmem: roberto prado

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 23 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

(Um conto mórbido)

Com os olhos inchados de tanto chorar - sim ele chorou sem que ninguém percebesse, mas ele chorou - Oswaldo olha o relógio de pulso, entre as renitentes lágrimas tenta ver as horas. Ainda falta muito para a meia-noite.

Oswaldo veste o terno preto, que ainda recende à coroa de flores, fumaça das velas, aos perfumes das velhas parentas que o abraçaram, o cheiro dos cigarros que fumaram durante o velório de Carmem. A boca estava amarga de tanto tomar café, as costas doíam de tanto tapinhas de consolo, o corpo estava moído de tanto cansaço, mas a mente não desligava.

Olhou outra vez para o velho relógio que dançava em seu pulso magro e cheio de veias azuis, e viu que o tempo avançara bem pouco.

Resolveu tomar um banho, longo e quente que, quem sabe, lhe traria um sono breve, porém repousante?

Subiu as escadas lentamente, quase como que conferindo os números de degraus que ele conhecia a trinta e cinco anos, olhou as ranhuras das paredes, a teia de aranhas que se formavam no alto do teto, ouvia sem prestar atenção nos ruídos dos velhos degraus de madeira. A porta do banheiro rangiu, mas ele também fez que não percebeu. Tirou as roupas e abriu o chuveiro.

As lágrimas deram lugar à água quente e ao vapor, lentamente os músculos foram relaxando e alguma coisa parecida com paz foi se apossando de seu esquálido e torturado corpo.

Mal se enxugou e largou-se na cama, aconchegando-se na depressão no meio do colchão, aninhando-se, dormiu. Dormiu sem sonhar. Acordou pouco depois das dez, percebeu mais do que sentiu que estava com fome, e olhando o que havia na geladeira resolveu que ficaria ainda mais um pouco sem comer.

Mais tarde isso seria solucionado, resolvido, e amanheceria o dia seguinte feliz, realizado e de barriga cheia.

- A morte não é fim. – ele leu essa frase escrita num bilhete colado com um imã na porta do freezer. Sorriu.

Olhou o relógio, eram onze horas, mais sessenta minutos...

Tornou a subir as escadas, agora mais rápido, tão rápido quanto a idade o permitia, entrou no quarto e vestiu-se.

Pôs uma camisa florida, comprada especialmente para essa ocasião, uma calça de linho branca, passou gel nos cabelos grisalhos, loção pós-barba nos rosto e saiu.

Sorria enquanto se dirigia até o cemitério, onde a mulher cumprindo a sua promessa de voltar após a morte, já deveria estar lhe aguardando.

Promessas, promessas, são tantas as promessas que faziam um ao outro, -”Nunca vamos nos separar" – diziam amiúde, - “quem for primeiro volta para o outro”.

Por isso a morte da esposa não o abalou.

A família, os amigos, até mesmo os funcionários da funerária, comentavam como o homem estava frio diante do corpo da mulher morta no caixão, não demonstrava qualquer sinal de dor ou abatimento. Pior ainda, parecia feliz, sorria, evidenciando até certa irritação quando abraçado e levando tapinhas nas costas.

Mas isso acontecera de manhã, quase ontem. Olha para o relógio, meia-noite em ponto. Ele estranha a ausência da mulher. Ela não está no portão esperando por ele como o combinado. Onde estaria? Teriam roubado o relógio com qual tinha sido enterrada?

- Malditos coveiros! – esbravejou baixinho para não ser escutado e confundido com ladrão de sepulturas. – Mas talvez o meu esteja alguns minutos adiantado. – tentou confortar-se com essa ideia.

Não demorou muito e logo ouviu a inconfundível voz da mulher que o chamava: - Oswaldo, Oswaldo você está aí?

Oswaldo emocionou-se, no seu íntimo achava que a mulher não voltaria do mundo dos mortos, ele jamais acreditara mesmo em reencarnação, não acreditava em nada, somente nas promessas da mulher. E ela cumprira mais essa.

Corre ao seu encontro, sorrindo, chorando, rindo, tremendo, arrumou forças não sabe onde para não gritar seu nome.

Lá estava ela.

Viva, ainda com flores grudadas na roupa, e viu aliviado que o relógio ainda estava em seu pulso.

- Carmem você voltou para mim como havia prometido. Vamos recomeçar a nossa vida em outro lugar. Já pus até aplaca de vende-se na porta de casa...

Carmem olhava para Oswaldo com um sorriso plácido, calmo, um lago sem vento sob o luar. Ela esticava-lhe o braço, mas não se movia do lugar.

Oswaldo achegou-se a ela e abraçou seus braços quase a partiram ao meio.

- Vamos Carmem. Vamos embora antes que aparece alguém por aqui e nos veja. Vamos embora, vãos embora. Você cumpriu sua promessa e voltou para mim.

Carmem sorriu, pigarreou, girou a ponta do pé direito no chão fazendo uma pequena depressão no solo arenoso, e olhando para cima, como que procurando alguma estrela no céu, declarou.

- Sim Oswaldo, eu voltei. Sim estou aqui como o prometido, mas não para ficar com você, mas para te buscar para voe ficar comigo. Chega de traições com a Vânia do escritório, com a minha prima Alicinha, com Dona Francisca da farmácia. Nunca mais você vai me trair Oswaldo.

E puxando um apalermado Oswaldo pelo colarinho, pulou de volta para a sua cova.

...e no escuro um gato miou, espantando uma coruja que estava prestes a dar o bote num rato.

2 Comments


Cafe e outras Palavras
Cafe e outras Palavras
Apr 23, 2020

Gostei muito.

Vários trechos flutuei nas palavras.

Achei delicado uma delicadeza...


Rose Tayra

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Cafe e outras Palavras
Cafe e outras Palavras
Apr 23, 2020

"Olhou outra vez para o velho relógio que dançava em seu pulso magro e cheio de veias azuis, e viu que o tempo avançara bem pouco." Sortudo, o tempo não é tão complacente com as pessoas...


O. Porto-Seguro.

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