Após o funeral: roberto prado
- Cafe e outras Palavras
- 2 de jul. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 3 de jul. de 2020

Então estavam todos reunidos em volta da mesa de mogno, escura como a alma de cada um ali dentro - com exceções é claro - sérios, graves, cheios de um orgulho vazio e sem sentido. À mesa copos de licor, o jantar já havia sido servido e alguns ainda comiam sobremesa, e eu num canto fumava meu cigarrinho, velho companheiro de dissabores.
O silêncio reinava absoluto.
Percebia-se que todos queriam falar, mas ninguém tinha coragem suficiente para dar a primeira palavra.
O nível de licor da garrafa de cristal baixava...
Acendi o segundo cigarro, que saboreei com certa volúpia provocadora, sensual e quase obscena, pois eu pressentia a tempestade que se aproximava...
Os silenciosos minutos se arrastavam. Len-ta-men-te...
Aqui e ali se ouvia tímidos pigarros, uma ou outra tosse acanhada, as crianças ainda se empanturravam com os doces da sobremesa, o nível da garrafa de licor chegou ao fundo.
Quando alguém proferiria a primeira palavra que seria o estopim para a bomba que acabaria com aquele marasmo?
Quem seria o “gatilho”?
O Gordo, o advogado[1] da família? Obscenamente obeso, nervoso, diabético, hipertenso, cardiopata com inclinação para sociopata.
O irmão carola, talvez? A cada gole do licor que ele sorvia mais com medo que com prazer, o rosário que trazia na mão direita batia da taça produzindo um ruído agudo que só piorava a situação.
As irmãs abraçavam-se com tanta força e medo que mais pareciam irmãs siamesas de algum circo de horrores desses que compram gatos para alimentar leões; elas cochichavam, não tinham coragem de pronunciar uma palavra sequer. O marido da caçula conseguiu junto à empregada umas garrafas de cerveja que, mesmo quente[2], ele bebia sem parar, evitando assim de falar qualquer coisa...
A coisa piorava, eu sorria e sorrindo, acendi o terceiro cigarro, o câncer de pulmão ainda haveria de compensar todo esse espetáculo que eu assistia de camarote.
Alguém tossiu mais forte, todos olharam para mim através da doce nuvem azul de fumaça à minha volta.
Pensei:
- “O começo” está próximo!
Como se nada estivesse acontecendo dei a mais grandiosa baforada de fumaça fazendo círculos no ar, círculos esses que flutuavam, dançavam, mesclavam-se uns com os outros, uma verdadeira obra de arte, uma sinfonia de nicotina azulada que foi ignorada por todos naquela sala. Ainda bem que eu sou um grande admirador de minhas obras, sejam elas quais forem, e não preciso desses idiotas como críticos!
Quando chamei Marizete, a empregada, para abrir a janela - pois a família exigia respirar ar puro - cochichei[3] em seu ouvido para que me trouxesse uma dose do uísque - dezoito anos! - do velho que estava escondido na terceira gaveta à esquerda da escrivaninha do velho lá na edícula que ele chamava soberbamente de “meu escritório”!
Aberta a janela pude ver melhor aquela matilha em volta da mesa e, para azar deles, eles podiam me ver também[4]!
O ar puro não melhorou em nada o clima, os irmãos estavam misturando cerveja quente com o licor, coisa boa não aconteceria, não aconteceria não, olhei para o meu relógio e mentalmente comecei uma contagem regressiva...
Quando Marizete entregou-me o copo de uísque – com duas pedras de gelo de água mineral – juro que senti a eletricidade no ar roçar a minha nuca. Chacoalhei o copo, as pedras fizeram um delicioso ruído batendo contra a parede do copo de cristal da Boêmia, acendi outro cigarro, e virado[5] agora para a janela, sorvi ruidosamente o primeiro gole. Talvez fosse o efeito do uísque com os quatro cigarros acesos um no outro, mas juro que vi um relâmpago e senti o chão tremer.
A coisa estava por um fio quando minha mulher com dificuldade conseguiu descolar sua pele da pele da sua irmã e falou, forçando uma simpatia que soaria falsa até para um marciano que viesse à Terra pela primeira vez:
- Bem, para desanuviar[6] o clima, conte uma de suas histórias.
E então o “gatilho” foi puxado, o estopim detonou a bomba e contra todas as “minhas” expectativas, eu causei a confusão toda...
Fora de mim, pus-me a gritar[7]:
- Eu não estou aqui para alegrar a vida de ninguém. Vocês são vazio, tão cheios de si, tão arrogantes, ambiciosos, tão cheios de seus direitos na hora de tomar algo de alguém, vocês que dormem com um olho aberto e outro fechado, tamanho o medo de serem roubados, que passam noites em claros matutando como tirar algo do próximo, vocês que passam a vida contando migalhas, vocês seus miseráveis que deixam de viver para não gastar, querem que eu, eu, eu lhes alegre a noite, os divirta com as histórias da minha vida? Vocês que não viveram a vida para poderem economizar querem eu os faça rir com as minhas aventuras, desventuras, com viagens para lugares errados, com as piadas me contaram em bares que frequentei? Vocês querem literalmente se divertir às minhas custas? Mas como vocês são miseráveis meu Deus! – nesse momento dei o grito definitivo:
- Marizete! Mais um copo de dezoito anos, sem gelo e enche o copo!
Bebi de uma vez só e acendi outro cigarro. O silêncio havia sido quebrado, enfim, mas o burburinho prometia que eu sentiria falta do silêncio logo, logo...
Antes que avançassem sobre mim, tentei a minha derradeira cartada, apostando no perfil daquela cambada, falei:
- Bom, por um preço razoável posso lhes contar os melhores momentos de minha vida, mas vocês terão de pagar pelo espetáculo e, me interrompendo, gritei para a Marizete:
- Marizete, pode passar a sacolinha que o show vai começar! – A partir disso tudo ficou confuso...
Mas segundo as palavras de Marizete, enquanto os cunhados me surravam – e ela gritava – eu sorria o sorriso mais debochado que já tinha visto![8]
Lentamente meus ossos estão colando, meu olho direito já esta quase sem sangue, o esquerdo ainda inchado; meus advogados já entraram em contato com aqueles miseráveis, e eles pagarão pelos implantes de meus dentes. Em seis meses deverei começar a andar normalmente...
[1] Na verdade Bacharel em Direito, pois ha dez anos tentar tirar a carteirinha da OAB inutilmente. [2] Ele adquiriu da família da mulher o hábito de tomar cerveja com gelo, por pura economia de eletricidade. Entendam como queiram! [3] Mentira, não cochichei, falei baixo, mas alto suficiente para que todos me ouvissem! Não valho nada, eu sei, mas já me resignei com isso e durmo bem à noite.Obrigado [4] Touché! [5] Tremenda demonstração de coragem ficar de costas para aquela caterva, admitam! [6] O que ela quis dizer com “desanuviar”, ainda estariam implicando com a fumaça do meu cigarro mesmo com as janelas abertas? Ou estarei, por fim, ficando louco? [7] Tudo o que vem a seguir me foi relatado por Marizete. [8] Perguntar-se-ão os leitores: - E a sua esposa? Respondo-vos: - Na hora que o pau comeu, ela, ufóloga amadora e diletante que é, foi para o jardim procurar discos voadores...
..e há que que se preocupam com gafanhotos!
R. Fedler