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Chefe ney sofre: roberto prado

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 21 de dez. de 2020
  • 4 min de leitura

(Drama Relâmpago!)




Local: Arquivo Geral de uma repartição pública.


PERSONAGENS:


Chefe Ney – Tido e havido por avis-rara, um abnegado e primeiro mártir do serviço público. Não tem e nem dá sorte com seus subordinados.

Agente Mostarda - Típico funcionário público, com agravante de não tomar banho, não trocar de roupas por meses e meses a fio. Ladrão de comida, flibusteiro covarde que ataca a cozinha e rouba comida da geladeira e das mesas dos colegas trabalho, vagabundo, chorão e endividado em todas as praças. Quando, na falta de que fazer, liga para as ex-mulheres e as xinga, sempre usando o telefone da repartição(para economizar!). Sua única fraqueza?, o gerente do Banco do Brasil.

O “Almirante Inglês*” – Outro funcionário da mesma cepa. Um herói que enfrenta qualquer empreitada no intuito de fazer nada. Foge do trabalho com um vampiro foge da luz, o talvez explique e justifique sua cor pálida. Sonha em ser um novo Agente Mostarda, seu ídolo confesso.

Adinilza** - A Viuvinha Profissional da Repartição, coleciona casamentos com funcionários moribundos sem porvir – Especializou-se na sagrada arte de segurar mãos de morrediços. (e depois tentar receber uma polpuda pensão), um dia há de conseguir. Ela se esforça!

Josyanderson - Outro tipinho, típico incompetente que sonha ser chefe de alguma coisa em algum lugar. (E sim, ele chegará.).

Tia do Café – Pessoa mais importante de qualquer repartição pública (vide a piada do leão que fugiu do zoológico) – entra muda e sai calada.

Telefone – O eterno preterido.


PRIMEIRO E ÚNICO ATO

Telefone toca.


O Agente Mostarda tem a mesma estratégia do “Almirante Inglês*” - velho funcionário, com uma longa lista de desserviço ao serviço público - para não fazer nada, questiona tudo suavemente, interrompe qualquer argumento e desgasta o sujeito que quer fazer alguma coisa.


Chefe Ney é massacrado por essa estratégia, e passado poucos segundos, por fim, desiste. Sai, vai tomar café, tentar acalmar-se. Ele veio de uma cidade grande no intuito de moralizar o serviço nessa repartição, mas sua missão não será fácil.


(alguns tic tacs depois...)


Chefe Ney volta.


Agora Adinilza - A Viuvinha Profissional – também está fazendo e seu número para o discurso do Chefe Ney com o uso majestoso de mímica & pantomima. Ela começa com uma falsa tosse - (não consegue chamar atenção), pigarreia (o mesmo efeito), deixa a caneta cair ao chão (nada), lentamente começa a choramingar, Chefe Ney dá-lhe seu lenço e pede-lhe que se dirija ao banheiro para se recompor. Agora ela começa a chorar de verdade (percebe que seu número, tão ensaiado, falhou) e sai da sala.

Telefone continua tocando...


Chefe Ney, tenso, sai à rua. Resolveu voltar a fumar.


(passam-se alguns minutos)


Chefe Ney volta.


Telefone continua tocando...


A conversa é reiniciada e o tempo vai passando...


Agente Mostarda olha fixamente (ah! aqueles baços olhos azuis...), como se estivesse preocupado, balança cabeça de cima para baixo, da direita para a esquerda negativamente e afirmativamente, levanta o dedo indicador e já começa a tartamudear, balbuciar e emitir estranhos grunhidos emulando sugerir, aludir ou citar algo no intuito de confundir, dispara o inexorável:


- “Veja bem!”


...e acaba por ganhar mais tempo para não fazer nada.

Consegue a atenção de todos à sua volta.

(mais tempo perdido!)


Sagra-se vencedor!


(a claque aplaude histérica!)


Chefe Ney, de volta ao arquivo encara o Agente Mostarda.


Chefe Ney pensa:

­- Terei dor de cabeça hoje.


Chefe Ney percebe que hoje não será resolvido mais nada e coçando a cabeça, pede licença e sai para tomar outro café, fumar outro cigarro e ir à loja de caça e pesca praticar uns tiros.


Chefe Ney retira-se da repartição tocando seus snujs e murmurando seu mantra:


- “Ainda irei ao Ganges implorar a Ganga para que minh’alma imortal não ressuscite outra vez, vivo muito cansado de sofrer.” - Chefe Ney é fã ardoroso de George Harrison.


Telefone continua tocando...


À distância e nas sombras, o subchefe, e eterno chefe-substituto Josyanderson - O Sub-humano! - naturalmente, olha como que com sono para tudo isso e não diz nada, pois em seu intimo pensa:


- Quando o Chefe Ney cair reinarei soberano e porei essa canalha na linha! – Josyanderson, o subchefe, hidrófobo, saliva!

(Ao longe um lobo uiva...)


O tempo passa e:


Agente Mostarda voltou para sua pocilga leve como uma libélula soprada pelo vento. Abre a gaveta e joga migalhas, tiradas do bolso de sua jaqueta, de pão velho para as moscas que cultiva em cima de folhas de alface.

Ele está satisfeito, embaralhou tudo e não fez coisa alguma, venceu mais uma vez. Em seu íntimo ele se vê como o toureiro que matou o miúra, o gladiador que matou leões, um semicésar, ele sente-se o Grande Deus do Nada...


Amanhã será outro dia...


Outra luta.


Telefone continua tocando...


Agora Agente Mostarda está sentado em seu trono, olha para o relógio de pulso, com ar falsamente parvo comenta enquanto puxa do fundo de sua gaveta um sanduiche de mortadela:


- Chefe Ney - Perdigotos são disparados em todos os pontos cardeais e colaterais - é um incompetente, fala e fala e não explica nada...

Telefone continua tocando...


A Viuvinha, decana das viuvinhas de repartição com os olhos mais fundos ainda (muita maquiagem, tá na cara!), voltando do banheiro onde estivera chorando até agora, comenta com a tia do café, de passagem no momento:


- Esse cara é envolvente, sempre sério, parece que está engajado em não produzir nada – seus olhinhos fundos de viuvinha profissional brilham lúgubres como duas luzes negras – um vagabundo fantástico... Não a toa está galgando uma chefia aqui.


Pegando a tia do café pelo braço, indaga:


- Ele se locupleta? É solteiro? Será que vai viver muito ainda... Se ao menos fosse doente...


15h23, os demais funcionários fogem.


(Som de gongo!)


Telefone continua tocando...


(Cai o pano)




*Aqui a modéstia e o medo de um processo nas costas me impedem de declinar-lhe o nome real

** Novamente o medo e a prudência me impedem, outra vez, de declinar-lhe o nome recebido na pia batismal.


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