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Editor : alice bispo

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 23 de mai. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 24 de mai. de 2019

Quando eu virei a esquina e vi aquele prédio alto que dizia ser o lugar, eu paralisei. Falei com o cara por telefone, combinamos o horário e ele disse que estava ansioso. Eu também. Aquele manuscrito, aquelas folhas empilhadas e grudadas eram a minha vida. Tudo que um dia já me fez chorar e gritar de estresse, tudo reduzido a uma pilha de papéis. Era o meu dia de felicidade. Que se danem todos os outros e suas biografias de superação, eu também era um escritor que precisava ser publicado.

Continuo andando em linha reta naquela rua enorme e cheia de gente. Eu não posso parecer egoísta e tenho que aceitar opiniões. Não posso ser um idiota. Enquanto penso, vejo o edifício com arquitetura antiga e elegante me encarando. Entro.

Ar condicionado. Uma recepcionista loira, gostosa, espremendo os peitos naquela camisa social. Ela sabe que é gostosa. Sabe que você só vai comer ela na punheta. E, mesmo assim, eu tento sorrir alegre debochando de seu olhar cínico.

"Posso ajudar senhor?" Carol diz isso enquanto olho em seu seio esquerdo um quadradinho com seu nome. Um nome comum. Provavelmente um apelido. Ela deve ser daqui de Santos mesmo. Não puxa nenhum acento, nem consoante onde não tem.

"Eu recebi uma ligação semana passada e marquei com o editor. Acho que é editor. Tinha mandado um pedaço do meu trabalho pro e-mail da editora e fiquei emocionado quando me responderam. Enfim. Alisson. Meu nome é Alisson e deve constar aí na sua pasta ou computador..."

Ela conferiu de forma automática:

"É, parece que você é o cara dos dotes... A sala do editor chefe fica à esquerda, no terceiro andar. É só seguir no corredor que você vai ver um elevador. É mais fácil que ir de escada e se esse troço cair da sua mão tem como recuperar. Alguma dúvida?" Aquele sorriso encenado... vadia. Eu ainda vou ir pra cama com você.

Balanço a cabeça e agradeço de forma seca. Sigo até o elevador. O prédio é um pouco velho como todos em Santos, mas parece que foi reformado há pouco tempo. A tinta nas paredes são de um tom bege - como todos os outros prédios em Santos. O elevador é mediano, do tipo que suporta até oito pessoas, se você sozinho não pesar 180 quilos e reduzir suas companhias.

Enquanto aperto o botão do terceiro andar, sinto minha barriga enrolando e meu cu querendo me sacanear. Seguro bem forte o manuscrito. É a sua vida. Sua vida todinha. Só mais um pouco e você será publicado.

Aquela voz feminina robotizada anuncia o terceiro andar. Atravesso o vão do elevador sentindo meu suor na testa. Meu coração dispara e sinto minha boca seca. A vontade de cagar ainda continua firme enquanto observo as plaquinhas nas portas.

A do cara é a última. Que ironia. A luz no fim do túnel.

Sigo de forma lenta e suspiro na porta de vidro. Bato na porta de forma tão leve que quase não escuto. Bato de novo e dessa vez uma voz do outro lado autoriza minha entrada.

A sala é grande, horizontal, com dois janelões que dão para a ponte de acesso ao porto logo atrás. Um trem fica mediando os dois. As mesas são brancas e pequenas, repartidas no estilo redação de jornal, onde você só consegue ver a cabeça de quem fica ao lado. Não tem muita gente. Quando conversei com o cara por telefone, ele disse que era melhor na hora do almoço, quando o escritório esvaziava.

Fico parado meio perdido, com vergonha de perguntar quem é o cara. Eu nem sei o nome dele. Nem cheguei a perguntar. Ele também nem falou...

Uma mão peluda se ergue no meio da sala e consigo ver que é um aceno. Acho que é esse cara. Retribuo o aceno com um sorriso e vou até ele.

Sua mesa é grande e cheia de tralhas. Bloquinhos post it, folhas de caderno amassadas, maçãs pela metade, incontáveis clips, fora telefone, computador, mouse, tudo junto na bagunça. Ele me olha com um sorriso sem dentes, enquanto bate as mãos sujas de farinha - ele comia algum assado - e me manda sentar, logo a frente de sua mesa. Duas cadeiras pretas me olham. Escolho a mais central. Quero manter contato visual.

"Então você é o garoto dos dotes - ele começa de forma expansiva - gostei de sua atitude. Devo confessar que não costumo responder aos e-mails, muito menos ligar. Mas você é diferente. Bem diferente. Escreve de forma ousada e autêntica. Você me lembra os clássicos. É claro que você não chega nem perto de um Machado ou de uma Clarice - nessa parte solto um risinho em confirmação e ele prossegue - mas, tem talento, é inegável.

"Muito obrigado. Fico feliz em saber que admira o que escrevo. A sua editora publicou grandes obras nos últimos anos" - Mesmo sendo uma bela puxação de saco, é sincero. Acho que ele percebe e remonta o sorriso sem dentes.

"Deixa disso, garoto dos dotes, você é o cara. Mas eu não vou publicar o que você escreve. Desculpa ser tão franco, não gosto de ser franco nessa medida, mas preciso. Você é bom no que faz. Como o último livro que editei, o cara é foda. Mas não vende. Eu editei e publiquei porque era meu amigo. Foi esmola, se você me entende. - ele pausa de repente, pega uma caneta e olha os lados, meio estranho. - Olha só - ele retoma - tem um jeito de você ser publicado. E eu vou ser franco, mesmo não gostando de ser: seja popular. Não ouça os velhos da literatura, eles estão enlatados em hq's infantis. Só assim que vendem, se moldando. A gente precisa de um pouco de algo ruim para sustentarmos o que há de bom. Sem falsas esperanças, no fim é tudo questão de grana. Muita grana. Não é que você escreva mal, mas isso nunca vai vender. Ninguém quer ler melancolia. Nem filosofia. Isso cansa os olhos. Se você escrevesse um pouco mais bonitinho, um romance cheio de cenas de sexo consciente. Um romance que molharia as calcinhas das adolescentes que esperam o príncipe à janela de casa. A verdade é dura demais."

“Mesmo quando tudo que você quer é um pouco de lambeção de saco e dinheiro, você nunca pode dizer isso”. No mercado fica feio quando somos egocêntricos e insensíveis. Veja bem: tente começar com contos mais leves e divertidos. Nunca comece pela dor, pela morte. A realidade tem que ser um pouco enlatada, senão fede e ninguém quer ficar em um lugar fedido. Venda algumas poucas cenas de um cara negro. Precisamos de diversidade, mas não muito. Crioulos não são exatamente atraentes para as meninas adolescentes. Você me entende? Mas você é muito bom no que faz. Tem talento. Eu continuaria escrevendo, mas faria uma conta no twitter. Você tem que se manter acessível e tem que fazer parte de tudo aquilo que repudia. Eu não vou te dar a fórmula, isso é ser franco demais. E eu não gosto de ser franco...

Outra pausa. Consigo sentir meus olhos vidrados em seus olhos arregalados. Consigo ouvir sua voz rasa, quase sussurrando, como se me falasse a receita do hambúrguer de siri. Vejo a caneta clicando histérica em seu polegar. Vejo a mancha vermelha em sua camisa, catchup. É. Deve ser catchup. Depois disso, não estou mais ali. E ele continua sua dissertação rápida e certeira. Mas não. Ele não gosta de ser franco.

Agradeço a ele pela atenção. Desejo uma boa tarde. E quando me levanto da cadeira preta de couro, sua voz invade a sala repentinamente.

"Você vai levar o manuscrito? Quer dizer, eu posso ficar e dar uma olhada? Só por curiosidade." Ele sorri envergonhado e eu falo que "sim, você pode ficar com meu trabalho, a gente se contata qualquer hora”.

Ele agradece e eu saio dali com o choro preso. Saio com as tripas na garganta, e o cu cheio de bosta. Desço de escada, no automático. Passo pela loira gostosa no automático. Caminho em direção ao ponto de ônibus no automático. E, sem me importar, atravesso a rua no automático. Você tem talento. Sua voz ecoa vibrante em minha cabeça.

Depois, o breu. Não me lembro de mais nada depois que o carro me atingiu. Nem quem foi o desgraçado que me deixou aleijado. Só lembro-me de ouvir a voz. Aquela voz grave e suave me dizendo que tinha talento.

Mas, espera qual o nome daquele editor de merda?


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