Fluxo de consciência da era moderna: alice bispo
- cafe & outras palavras
- 22 de jul. de 2019
- 5 min de leitura

Existia aquele cara e todas as nossas conversas. Nós andávamos por aí procurando alguma coisa que fosse diferente de tudo que tínhamos até então. Éramos dois homens leves e flutuantes, como balões de aniversário. E nós curtíamos a ideia de ficar chapado e encontrar umas garotas para trepar. E ficaríamos felizes depois da transa; E tudo seguiria seu fluxo ocasional. Ficaríamos preenchidos.
Completos.
Mas aí aconteceu uma coisa. Naquele dia ele estava mais calado que o normal. Andávamos por todos os lados, em todos os bares, sempre sorrindo, como duas crianças em um parque de diversões. Até que ele olha para mim e é como se ele estivesse fora dali, como se estivesse observando o que éramos e não o que representávamos.
"Qual é o ponto?
Por que estamos aqui?"
Eu não entendi o que ele queria me dizer, mas seus olhos estavam vidrados e eu podia sentir a vibração em cada palavra. Sua inquietação que ele deixou se materializar ali, comigo. "Eu não sei. Estamos só nos divertindo, não é?" Foi tudo o que eu disse.
Depois disso, eu nunca mais o vi. Ele nunca voltou a fazer os passeios e eu não sei por que, mas eu sentia que a culpa era minha. Se eu tivesse falado a verdade, se eu tivesse sido sincero, em vez de medroso, talvez ele ainda estivesse aqui.
Eu não sei por que essas lembranças continuam voltando, e eu continuo aceitando que elas voltem. Mas hoje eu sei por que fazíamos aquilo. Hoje eu entendo que toda aquela pressão, toda aquela tristeza do início da vida se diluia em alguns segundos de rebeldia. Era o que éramos. E toda aquela bagunça, todos os descompromissos que inventávamos, eram tudo uma fuga.
Por que meus sapatos são esses? Hoje estou de tênis e me sinto como um adolescente. Há muitos anos que não me sentia como um adolescente. Minha camisa é aquela do comercial de tevê, assim como as calças justas. Garotas mais novas adoram quando você compra uma calça mais apertada. E eu compro e eu me defino através dessas pequenas coisas. Uma representação.
O café está muito quente nesse copinho de plástico ridículo e a máquina sempre cospe o último pingo na minha mão e eu fico puto toda vez, todo dia. E todo dia eu me esqueço de trazer a minha caneca; e toda vez a mesma irritação com esse maldito pingo; e mais uma vez a estagiária retraída e tímida vai olhar a manchinha em minha pele e vai perguntar o que houve e eu darei risada e falarei que foi a máquina. Maldita máquina de café. E daremos risada da minha idiotice.
Mas ninguém comenta sobre a insegurança da estagiária, sobre o medo de que a máquina derrame todo o café ao invés de um pingo; ninguém vai comentar sobre o porquê das meninas acharem os caras mais atraentes com calças mais justas, porque ninguém nunca é sincero.
Nunca.
Hoje é sexta-feira e eu agradeço a deus por isso. Hoje vou voltar para casa sabendo que amanhã eu não vou precisar vir para esse lugar de merda. Hoje eu voltarei contente. Não é verdade o que eles dizem sobre trabalho e satisfação. Eu odeio o que eu faço pelos motivos óbvios: cansaço mental, insegurança, solidão, alienação...
Nesse ponto eu acabei ficando meio zonzo e tive uma visão estranha:
Eu estou no comercial da televisão. Eu sou o garoto da escola, que está correndo e está feliz. Eu como brócolis, faço futebol, tenho boas notas e costumo ser educado e gentil com senhoras de idade avançada. Eu estou correndo com meus colegas de turma, prontos para tomar aquele refresco e para sorrirmos para a câmera que passa ao redor. E agora tomamos. Estamos sorrindo. Sorrindo. Sorrindo... (minhas bochechas ardem), sorrindo (mas eu preciso sorrir para que eles fiquem com a imagem do garoto que sorri) e eu bebo mais uma vez. E meus amigos (quem são esses garotos?) me abraçam forte.
Corta.
Eu volto para casa com dor no estômago, grito com minha mãe porque ela não pegou o cereal açucarado, amasso o bilhete da diretora em meu bolso e rio da velha usando uma meia beje nas panturrilhas (que porra é aquela?).
Corta.
No fundo eu me enojo porque eu não consigo viver sem ter uma imagem a representar. A mesma imagem que representei com meu melhor amigo há anos e que me custou sua amizade e nossos passeios. E eu me tornei a imagem.
E isso me levou a algumas conclusões:
Somos a geração mais depressiva e insatisfeita de todos os tempos. Ou é como nos sentimos. Todos os dias lutamos por coisas passageiras para não sentirmos o gosto de vencer; Começamos novos relacionamentos, pondo fins inexistentes a antigos que não satisfaziam ao nosso ego; A nossa concentração em nós mesmos é superficial e vazia; Constantemente estamos à procura da aceitação alheia; Sempre que possível limitamos nossas escolhas ao que é aceito socialmente; Repetitivos como animais domesticados, encaramos séries e séries de trabalho alienado por simples centavos e no fundo não temos escolha. Eu não tenho escolha. Você não tem escolha. E não queremos pensar muito sobre isso, porque dói ter um pensamento que nos conduza às mudanças de hábitos. Os hábitos são confortáveis ilusões, aquele colchão macio que sempre nos faz dormir quentinho.
Quer saber? Todos sabemos de tudo isso, não é nenhuma novidade, não há surpresas. Estamos sozinhos em coletividade. E cada um enlouquece à sua maneira. Eu fico louco à minha maneira. Eu sinto a loucura, eu vivo a loucura, eu salivo pela loucura. É um ciclo.
Mas sempre vem o conselho da geração. Onde, inconscientemente, sabemos que uma colisão está próxima. Sabemos através de nossos deslizes, dos pontos cegos, das pessoas que assumem que estão vazias e depressivas e pedem ajuda. E o nosso olhar se desvia por um segundo e encara aquela deformação e se espanta. "Meu deus! Estava aqui do meu lado, essa pessoa trabalhava aqui comigo e agora o cérebro dela faz uma lama de neurônios no chão do banheiro daquela casa perfeita e ajustada (ela chamou um arquiteto), como assim?"
E todo esse delírio se esgotará em alguns minutos de pequena concentração para se vidrar em algo mais atraente: "Por que a Bruna Marquezine sempre dá uma segunda, terceira, quarta, quinta chance ao Neymar? Eu hein, as mulheres hoje em dia não se respeitam mais como antigamente!" E o colapso vai explodir em mais alguns cantos, mais algumas tragédias, mais alguns assassinatos e dali em diante sua vida mais superficial e boba. Até o dia da morte. Onde os rótulos, os desejos, tudo isso vai ser parte de algo pequeno. Fará parte da vida.
Mas o niilismo. O nada do nada. Será essa a nossa ruptura?
Eu não vejo saída a quem enxerga nada na vida. Eu enxergo muito, mas nada de substancial. No limbo. Eu estou como o meu pai e como a minha mãe no começo de suas vidas.
Eu estou perdido. Estou desesperado. Estou completamente triste.
Meu amigo se matou e não tinha ninguém sóbrio em seu enterro.
A máquina de café é uma merda e não tem ninguém que a conserte.
Minha vida é uma caminhada desgastante para a morte.
Mas, graças a deus...
Amanhã é sábado e não precisarei vir trabalhar.
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