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O dia de escrever carta para a família: marcelo lemos

  • Foto do escritor: cafe & outras palavras
    cafe & outras palavras
  • 9 de ago. de 2019
  • 3 min de leitura


Henrique, que a aquela altura já havia se tornado um grande amigo, estava revoltado:

- Agente trabalha, paga os impostos, procura fazer tudo certinho e não consegue se sustentar! Tem dias que não consigo encarar meus filhos. Minha filha é a melhor aluna da sua classe e uma das melhores da escola e às vezes quando me pede para comprar algo para ela, não consigo dar. Não aguento isto!

- Vociferou.

Comerciante como ele, só que a bem a mais tempo e com maior espectro de altos e baixos, repliquei que é assim mesmo.

- O comércio é o preservativo da sociedade. Ele é o primeiro a sentir a pressão – disse-lhe.

Parecia que sua angustia e impotência alimentara ainda mais.

Contei-lhe que quando da queda do Word Trade Center, nos dias que se seguiram, assisti a entrevista ao vivo, de um senhor que possuía uma lanchonete a algumas quadras dali, dentro de um perímetro que ficaria fechado por meses. A jornalista em tom alarmista lhe perguntou:

- O que o senhor irá fazer agora?

Com uma serenidade quase budista, respondeu-lhe:

- Aquilo que fiz a vida toda - trabalhar. Estou a tempo suficiente no comércio para saber que há tempos de se ganhar dinheiro e há tempos de sobreviver. Estamos entrando em um período de sobreviver.

Sua lucidez cortante e juntamente talvez com a quebra de pauta, que seria a entrevista de alguém desesperado, levou a entrevistadora a encerrar a matéria muda.

- Mas não é justo, caramba! – repetia Henrique inconformado

Neste momento, tentei outra abordagem, este fruto de reflexão pessoal e por me interessar por história, que me foi de fácil conclusão.

Disse-lhe que todas as gerações, com raríssimas exceções, tinham sua guerra, sua peste ou catástrofe. Que se esta fosse a nossa, deveríamos ser gratos.

E realmente, esta era minha percepção. Estávamos em uma economia de guerra - sem a guerra.

Continuei.

- Aproveite o que tens de bom, os teus filhos com saúde, inteligentes, amáveis... Tua esposa, companheira, lado a lado na trincheira contigo. Isto é Muito!

Acredito que neste momento, consegui tocá-lo, fazendo levantar a cabeça e olhar para as rosas que cultivava e não para o esterco que as adubavam.

Deixei-o pensativo.

Além da forte amizade que nos unia, por motivos comerciais (é ele um de meus fornecedores), nosso contato era quase diário.

Volta e meia, a conversa vinha à baila, em um tom cada vez mais ameno:

- Hoje a batalha foi árdua. Está na hora de contar as baixas! – ríamos.

Ontem à noite, quase na hora de fecharmos a padaria, chegou Henrique com Meire, sua esposa, trazendo-nos charutinho de repolho e um creme de alho. Entrou falando:

- Hoje é dia de escrever carta para a família e limpar o fuzil. Tivemos um dia de trégua no front! –Rimos!

Contou-nos que havia conseguido pagar daquele dia, suas contas e cobrir os cheques que iriam cair e sobraram-lhe uns ridículos trocados. Passou no mercado, comprou doces para os filhos e algumas latinhas de cerveja para tomar com a esposa. Fizeram jantar em família e tiveram uma noite de Ação de Graças, quando se lembraram de compartilhar este momento de Epifania, conosco.

Abrimos algumas cervejas, dividimos os charutinhos e nós quatro celebramos este verdadeiro momento Eucarístico, no qual pela superação pessoal, o melhor de nós toca o outro, fazendo-nos ter certeza, que na vida, a felicidade, em vez de ser feita de grandes acontecimentos, é tecida diariamente de pequenos fatos, alinhavada por largos sorrisos.

Lembrei-me do Natal em Ypres*.





*Em fins de dezembro de 1914, em Ypres, na Bélgica, em um insólito e espontâneo movimento, tropas alemãs, juntamente com seus opositores ingleses e franceses, fizeram uma trégua no que estava se tornando a Primeira Guerra Mundial, trocando entre si presentes, e fazendo uma semana de comemorações e festividades conjuntas.

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