O dia que não queria acabar: marcelo lemos
- Cafe e outras Palavras
- 26 de fev. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de fev. de 2020

Prólogo
Era uma sexta feira como outra qualquer.
Cheguei às sete horas na empresa, após os três ônibus habituais e as duas horas de percurso, tempo que na época, levava de Nilópolis, onde morava à rua Riachuelo 92, na Lapa, onde ficava a fábrica.
Estávamos no Rio, em época pré-linhas Vermelha e Amarela, onde possuía como única artéria ligando à Baixada Fluminense, a heroica Avenida Brasil.
I
Bem, como disse, tudo corria com a mais rotineira normalidade até que às 8:30, toca o telefone e sr. Egídio, o gerente de vendas, pergunta-me:
- Marcelo, bom dia. Você que veio da filial Santos, conhece Braga, o inspetor?
- Sim conheço.
- O que me diz dele? É bom profissional?
- Sr. Egídio, o melhor vendedor que conheço. Boêmio, putanheiro, indisciplinado, mas o melhor vendedor que conheço!
Do outro lado da linha, gargalhadas.
Ao fundo, uma voz, dizendo: - Quer dizer que sou indisciplinado e putanheiro!
Era Braga. Tinha vindo, com um amigo, conhecer a nova fábrica de Jacarepaguá, que até então, era a maior planta cervejeira do hemisfério sul e aproveitou para visitar-me.
Sr. Egídio pediu que, caso não tivesse nada urgente para fazer, ver com Rolan, meu chefe, para liberar-me para ciceronear os dois.
II
Luiz Carlos Braga merece apresentações.
Figura conhecidíssima na noite santista e trabalhando há muito na Cia. Antártica Paulista, era o homem que a empresa suportava para poder dizer não aos clientes. Magro, barrigudo, careca, com para-lamas e bigodes brancos, sendo estes tingidos de nicotina ao centro, tinha uma habilidade comercial que só rivalizava com sua destreza com as mulheres. Visitava os clientes até às três horas da manhã.
O cliente de porte dava entrada na empresa com pedido de investimento em sua casa e quando ela sem verba entrava ele em cena.
Chegava na casa do cliente e dizia:
- Porra fulano, tú és um azarado mesmo. Não estás valendo nada. Pedes tudo e só recebes eu! A esta introdução inusual, seguia toda uma lábia tentando explicar para o cliente o que, em outras circunstâncias, nem ouviria. Esta oitiva tinha normalmente como desfeche uma cervejada e o cliente ainda fazendo questão de custeá-la.
Era um mágico.
Entre suas insólitas histórias, das quais presenciei, em uma madrugada em um bar da zona, aproxima-se um desconhecido, dando-lhe um recado do Sr. Tranca Rua das Almas. Achei que era apenas uma brincadeira de mau gosto, mas virou-se para mim e disse: - É sério!
Em Santos, trabalhávamos no mesmo departamento.
Numa manhã de quinta feira, chega quatro horas e meio atrasado.
Encarregado novo: - Porra Braga, de novo?
- Cara, o caminhão de lixo quebrou na frente da minha casa. Não tive como tirar o carro.
- Porque não veio de ônibus.
- Não tinha como abrir o portão. Ele quebrou rente ao muro.
Todos rimos.
O encarregado então, pergunta se ele o tem como otário e continua:
- Quer que eu acredite nisso?
- Não sei. É o que está escrito em meu relatório.
III
Bem, assim fiz.
Levei-os para conhecer a fábrica toda e após quinze minutos, chegamos ao filtro, sala à zero grau, onde a cerveja vinha em grossas tubulações e antes de ser pasteurizada (ainda chope), era filtrada.
Os funcionários, com grossos casacos e botas com solado de madeira (isolante térmico), nos ofereceram chopes, tirado direto dos dutos.
- Caneco de 2, 1, ou meio litro? – perguntou-nos.
Todos optamos por o de um litro.
Creio que isto deva ter ocorrido por volta das nove horas.
Depois de vários litros e duas porções de calabresa acebolada, feitas lá mesmo em um fogareiro malocado entre os tubos, olhei assustado no relógio.
- É meio dia. Temos que almoçar!
Bati cartão e fomos almoçar no 62 da mesma rua.
Duas horas depois, um robalo recheado e vários chopes, retornamos a fábrica.
Botei-os em um carro e os despachei para conhecer a fábrica de Jacarepaguá, que para os moldes da época, era uma cidade.
Fui trabalhar um pouco.
IV
Duas horas depois, os dois estavam de volta.
Da Lapa até a nova fábrica, eram no mínimo 40 minutos, ida e volta, uma hora e vinte.
Em meia hora, não conseguiriam conhecer nada! Era uma cidade...
Ligaram da portaria:
- Estamos indo para o filtro.
Ordens dadas... Fui ciceroneá-los.
18 horas.
- Tenho que bater o cartão!
O que vocês querem fazer agora?
- Tem alguma choperia por aqui?
V
Fomos então a um bar na mesma quadra, que ficava em uma centenária construção que outrora, fora o palacete do Visconde de São Lourenço. Pedimos chopes e lá ficamos até às 20:30, quando decidimos pedir a conta.
Levanto para ir ao caixa, quando entra um funcionário do jurídico da empresa e grita:
- O bar está fechado. Estou indo para Goiânia. Hoje é tudo por minha conta!
Apagam-se as luzes três vezes, tem guerra de chopes e sento minha bunda novamente na cadeira.
22h30min horas
– Vamos embora?
Todos concordam.
VI
Braga:
- Tem algum outro boteco por aqui, para a gente tomar a saideira?
Saímos então da Lapa (que na época era apenas um bairro deteriorado e decadente) e fomos procurando algo aberto.
Achamos uma lanchonete no Castelo com as cadeiras já em cima das mesas e um funcionário lavando o salão com uma mangueira.
- Dá tempo de tomar uma?
- Só se for em pé no balcão.
Quando pedimos a quarta, o sujeito gentilmente falou:
- Chega porra! Vocês falaram uma. Vou fechar.
Fomos atrás de outro lugar para encerrar a noite.
VII
Lembrei que sexta tinha sardinha.
Ao sairmos do Castelo, percebi que o calçamento tornara-se um tanto quanto almofadado. Caminhava agora num imenso edredom. Desconfiei, de leve, que começara ficar alto.
Não liguei.
A sardinha era um “sambão” que se formava em algumas ruas do centro do Rio, as quais eram fechadas e se fazia uma roda de samba – da melhor qualidade.
A rua era coberta de mesas de lata – sem cadeiras – e eram servidas sardinhas na brasa, acompanhadas de molho de limão e sal e molho de pimenta, cerveja e nada mais. Mas era uma festa.
A esta altura, minha visão já estava um tanto quanto caleidoscópica, tendo um foco central ampliado e em suas bordas, borrões coloridos girando animadamente. Revendo hoje os fatos, acredito que neste momento, já se encontrava eu, de fogo.
VIII
Chegamos na sardinha.
No foco de minha luneta, vi o que me parecia duas enormes e brilhantes jabuticabas, unidas uma à outra, de textura inigualável. Não pude resisti. Conferi com minhas próprias mãos. Qual não foi minha surpresa em descobrir que era parte importante de uma linda morena de olhos verdes, vestida com uma negra calça de couro.
Talvez percebendo minhas dificuldades sensoriais em especial, minhas limitações visuais, desferiu-me um enérgico tapa, o qual de pronto, aprumou-me novamente meus globos oculares.
Ainda em estado de êxtase e agradecimento, começo a ouvir atrás de mim, o que me parece um ruído estático, que aumentando de volume, vai se tornando um ininteligível e aflitivo mantra, até que virando para trás, vejo Braga e o amigo segurando algo que me parecia um touro, de tão grande.
Eram eles gritando:
- CORRE! CORRE! CORRE SEU PUTO!
E atenciosamente, corri feito um desesperado.
A propósito, o “touro” era um negro enorme, namorado daquela jabuticaba encantada.
Corri desesperadamente quatro quadras, até chegar desfalecido na praça Mauá.
Nesta hora, se comprovou uma importante descoberta cientifica que fiz anos atrás
– O medo neutraliza o efeito do álcool, instantaneamente, mesmo que forma temporária.
Por sorte, naquela hora, partia uma roletinha que passava por Nilópolis.
IX
Entrei no ônibus, o cobrador já roncando sobre o caixa e para minha surpresa encontrei Márcia, uma amiga, sentada no último banco. Além do motorista e o cobrador, no ônibus, só havíamos nós.
Marcia era frequentadora do apartamento que dividia com mais dois amigos e já havia sido namorada de alguns outros amigos.
Ficou feliz em me encontrar e no estado animado em que me encontrava, não perdi tempo, e como um esfuziante vendedor de títulos de capitalização, tentei convencê-la que seria uma grande coisa, acasalarmos naquele coletivo. Que seria uma oportunidade única, que viria a abrilhantar nosso Curriculum Vitae, fato que contaríamos, com orgulho, para nossos netos.
Fiquei mais de uma hora tentando convencê-la. Gostou da idéia, mas não tivemos êxito por uma pequena diferença de octanagem.
Disse que ali não dava, mas me procuraria no dia seguinte. Levantou-se e desceu ali, em Anchieta, alguns pontos antes do meu.
X
Por um átimo de tempo, perdi-me em divagações que não sei nem quando ou como, tornaram-se sonhos. Fui acordado na rodoviária de Nova Iguaçú, ponto final do ônibus e duas cidades depois de onde deveria saltar.
Eram 02h30min da manhã! Não tinham mais ônibus àquela hora.
Comecei uma caminhada pelos lugares mais temerosos, na época, em direção à minha casa à dez quilômetros dali, na esperança de passar algum abençoado ônibus, que não passou.
05h30min da manhã chego em casa, com a sensação que havia esquecido algo.
OS SANTISTAS!
Normalmente não dormiria de preocupação, mas o fiz antes de encostar-me à cama.
Epílogo
Não possuía telefone, nem nenhum de meus amigos. Tive que aguardar segunda, no trabalho para saber o que aconteceu com Braga e seu amigo.
Esperei dar dez horas, hora que normalmente ele chegava para trabalhar e liguei para a fábrica de Santos.
Pedi para falar com ele:
- E aí estás bem?
- Tú és louco? Se não fossemos nós, estarias morto.
- Eu sei. Vocês estão bem? Como se viraram?
- Então, ficamos segurando aquele armário que tinha nome, e nos desculpamos por ti, dizendo queiras um bom garoto e que estavas momentaneamente sob efeito do álcool.O acalmamos e pagamos algumas cervejas para ele. Fizemos amizade com a namorada e os amigos dele.
Terminando o samba, fizeram questão de nos levar na rodoviária Novo Rio. Esperamos um pouco e logo conseguimos ônibus.
- Vocês não iam ficar o fim de semana?
- Íamos. Mas só a sexta valeu por um mês.
Isso é um roteiro pra um road movie...
melhor sorte com as jabuticabas da próxima vez.