O morto: roberto prado
- Cafe e outras Palavras
- 26 de jun. de 2020
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Estavam todos chorando.
No velório o cheiro dos círios com perfume de alfazema das velhas empestava o ar.
Uns choravam discretamente, outros dando espetáculo, lá no bar o cunhado fazendo truques de mágica para entreter as crianças e “bebendo o morto”.
- Velha tradição de nossa família. - dizia entre um copo e outro seguido de uma cusparada no chão:
- Pro Santo!
Lá no caixãozinho humilde, o cadáver descansa, talvez contando os minutos para o enterro, na plena certeza de nunca mais ouvir choros, lamurias, adeuses. Mas o incomodava mesmo era o:
- “Oh! por que aconteceu isso comigo meu Deus?” – gritado pela viúva, uma senhora de seus cento e tantos quilos. – quando o morto ali era ele.
Deitadinho, duro, com algodões nas narinas e gaze segurando a boca, como se ele ainda fosse falar mais alguma coisa com alguém nessa vida.
Pensava com os botões do terno de seu casamento que já ia tarde.
Quarenta anos de casamento com Dona Lalinha, suas duas irmãs viúvas e um cunhado ex-vendedor de enciclopédia e bicheiro, elas sempre vestidas de preto como dois urubus, ele vestido de fraque e cartola, comprado num brechó e o papagaio da família, herança da avó deles.
Estava morto e estava muito feliz, tão feliz que se pudesse iria sozinho para o cemitério, cavaria a própria cova e lá deitaria, esperando ansioso pelos vermes que lhe dariam o fim definitivo!
Mas a cada minuto, mais choros, mais lágrimas, mais ranger de dentes. No velório ao lado não havia quase ninguém, o pobre do falecido estava lá abandonado, com as moscas voando em volta de seu nariz, feliz da vida, enquanto ele não tinha sossego nem no próprio velório...
Ele queria dormir em paz o seu último sono, será que ninguém compreendia isso?
Dona Lalinha, esse não era o nome da viúva, sim o apelido que ela carrega desde, desde, desde quando mesmo?, ele já nem recorda mais, estava sendo consolada pelas “Filhas de Maria” de sua igreja, pelas senhoras tão viúvas e velhas e gordas como ela, e a cada abraço mais lágrimas, mais “aisporquemeudeus”.
E em coro todas respondiam:
- Foi a vontade de DEUS!
Ele se ria todo por dentro...
Quatro horas da tarde, enfim, chegam os funcionários que o levarão para o cemitério. Enquanto levantam o caixão, Dona Lalinha desmaia e suas irmãs a abanam com leques espanhóis cheirando a mofo, o que complica um pouco mais a situação.
O esquife é posto no carro e segue.
E quando o caixão desce à terra, o defunto dá pela falta do anel de ouro de formatura, seu único bem.
- Meu cunhado! – ele pensava enquanto a terra era jogada sobre o ataúde.
Cunhados, um mal desnecessário...
R. Fedler