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O sonho: roberto prado

  • Foto do escritor: Cafe e outras Palavras
    Cafe e outras Palavras
  • 22 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Sonolento, ele atende ao telefone, e uma voz grita:

- Não sonhe mais comigo! – vociferou.

Atordoado, o homem balbucia uma pergunta:

- Quem fala?

- Ora quem fala? Sou eu seu miserável! Onanista dos infernos. Já disse e vou repetir:

- Não sonhe mais comigo. Meu marido me ouviu gemendo o seu nome, chamando o seu nome... Tive que me virar para evitar coisa pior. Não sonhe mais comigo, por favor. Tenho um casamento sólido, e numa separação não vou levar nada por causa do contrato nupcial. Veja, estou ligando do celular da minha vizinha, pois ele levou o meu aparelho. Não sonhe mais comigo, isso me prejudica...

E, com um discreto suspirou, desligou o telefone.

Quem seria essa mulher?

Desde quando alguém vivencia os sonhos de outra pessoa? Teria ele agora que policiar seus sonhos?

Serviu-se de um café forte, sem açúcar, e continuou tentando saber, se lembrar, quem era essa mulher...

Saiu para trabalho, e na azáfama do trabalho acabou por esquecer o incidente (o pesadelo acordado?) e seguiu resto do dia sem pensar mais nisso, até a hora do almoço.

Meio-dia.

Junto com os colegas espera o elevador.

Todos entram.

Lá dentro algumas pessoas dos andares superiores.

Cumprimentos secos e formais, todos olhando para o chão esperando chegar ao andar térreo.

Esperando que todos à sua frente saiam ele continua encostado no espelho, é o último a deixar o elevador.

E com pressa vão em direção ao restaurante, de sempre, almoçar e conversar.

Treze e trinta.

Todos de volta ao escritório.

E segue assim a vida até às dezoito horas.

Fim do expediente.

Arruma carona de volta pra casa, pois chove e ele não gosta de pegar ônibus em dias assim...

Em casa.

Pega os folhetos de restaurantes e começa a escolher o que pedir para o jantar.

Liga a TV, assiste a um telejornal sem importâncias com notícias frívolas e propagandas institucionais. Vai mudando de canal esperando a comida chegar ou a pilha do controle-remoto acabar, o que acontecer primeiro.

Quarenta e cinco minutos depois chega a refeição.

Senta-se à mesa e começa a comer.

Serve-se de duas garrafas de cervejas, lembrando-se de como começou seu dia quer cair duro na cama sem sonhar...

Tenta assistir a um filme, mas não consegue se concentrar nele.

Toma um banho quente e relaxante.

Pega um livro policial – sua leitura alienante preferida - e vai pra cama.

Antes da quarta página, adormece.

Não sonha.

Seis horas da manhã.

O telefone o desperta antes do relógio.

Acorda assustado

- Isso só pode ser problema! – ele tem mãe velhinha, e se preocupa com ela. Acorre à sala - não gosta de telefone no quarto – e atende.

- Alô! – geme, com o coração saltos.

- Por que você fez isso? – a voz do outro lado da linha chorava e soluçava. – Seu assassino, assassino! Você matou o meu marido!

- Pelo amor de Deus. – agora ele estava assustado – quem é você? O que houve? Eu não matei ninguém. Eu nem sei quem é você.

- Como não sabe quem sou eu? Sou aquela loira do elevador. A que você olha todos os dias...

- Mas que loira do elevador? Nunca vi nenhuma loira no elevador do prédio em que trabalho. A senhora deve estar me confundindo com outra pessoa... Como que meus sonhos podem influenciar na sua vida, na morte de seu marido... Ontem tomei duas cervejas e caí duro na cama, tenho certeza que nem sonhei. Muito menos com uma loira do elevador, sinto muito minha senhora...

- Não me chame de “minha senhora”! Não depois de suas promessas... Arrependo-me desse desatino... Agora que farei de minha vida?

E com acesso de choro desligou o telefone.

Tentou tomar seu café e sair para trabalhar sem pensar nessa conversa.

Tentou trabalhar, se concentrar em alguma coisa, mas só conseguia olhar para o relógio na parede, contava os minutos e segundo esperando pelo meio-dia, pelo elevador, pela loira-do-elevador.

Assinou papeis sem ler.

Respondeu perguntas com sins e nãos aleatórias.

Tremia por dentro num frenesi que acabaria dando nós cegos em suas tripas.

Sofria calado, uma ansiedade debilitante.

As horas arrastavam-se.

Enfim meio-dia.

Correu ao elevador.

Foi o primeiro a entrar.

Como um lobo faminto perscrutou todas as pessoas que lá estavam e lá não havia nenhuma loira quer de vermelho quer de outra cor.

O elevador demorava a chegar ao térreo...

Quando chegou ele parou na portaria do prédio.

Ficaria de tocaia até sair alguma loira de um dos elevadores.

Pediu ao boy que lhe trouxesse uns sanduíches, ficaria acampado até que a loira aparecesse.

Às treze horas voltou à sua sala.

A tarde estava perdida, não conseguiria concentrar-se em mais nada hoje. Esperou que o dia terminasse.

Às dezoito horas, fim do expediente.

Encostado no espelho do elevador, sem piscar, ficou procurando alguma loira.

No térreo chegou à conclusão que era alguma brincadeira, de mau gosto, de seus colegas.

- Sou um tolo mesmo. – riu e foi em direção ao bar. ”Almoçaria” e jantaria por lá. E aproveitaria para encher a cara e cair bêbado na cama.

- Sou mesmo um inocente! – amanhã iria descobrir quem lhe fez isso.

Praticamente rastejou escadas acima até o se apartamento, perdeu minutos preciosos tentando acertar a chave na fechadura da porta, tropeçou no tapete, quase dormiu por lá mesmo. Mas lutou contra a vontade de “morrer” no chão e conseguiu chegar à cama.

Seis horas toca o despertador.

Ele levanta-se a muito custo.

Apoiando-se nas paredes consegue chegar ao banheiro, posiciona-se sob o chuveiro e dorme em pé por alguns segundos.

Enxuga-se e vai preparar seu café.

- Essa brincadeira está me custando caro. – ri enquanto pensa em como “retribuir” isso aos colegas do escritório.

Tomou seu café com calma, assistiu um telejornal qualquer. Deixou a mesa para limpar à noite e foi trabalhar.

Com toda essa calma ainda acabou chegando cinco minutos mais cedo no escritório.

O saguão estava vazio, o elevador viria mais rápido e vazio, imaginou.

Aberto o elevador entrou e lá dentro encontrou entre outros “passageiros” enfim a loira, que lhe disse, com os olhos crispados de ódio:

- Miserável. Estou viúva agora... Falida e quase foragida. Tudo por sua causa... Que delegado vai acreditar que você matou meu marido em seus, veja bem, em seus sonhos para ficar comigo?

A sua voz ecoava pelo poço do elevador enquanto subiam. Todo mundo estava ouvindo aquele absurdo.

Quando...

...num tranco o elevador parou.

Faltou luz em todo quarteirão.

Na escuridão ele rogava ao bom Deus para acordar desse pesadelo.




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