Os covardes morrem mil vezes: roberto prado
- Cafe e outras Palavras
- 11 de mai. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 13 de mai. de 2020

Agora.
Estava no canto da parede desde ontem. Coberto de lágrimas, urina e baba. Ainda chorava convulsivamente.
Covarde.
Ouviu barulho do outro da porta.
Estavam voltando...
Então começou a cantilena sem nexo que vinha fazendo há dias, começou aos gritos histéricos a entregar todos os nomes de pessoas que conhecia ou se lembrava. O que começara baixinha ia aumentando o volume da voz e por fim chegava aos gritos e salivar feito um hidrófobo.
A porta abria-se, e uma mulher de burca, com somente os olhos à vista lhe trazia uma abandeja de comida.
Nunca falava nada, nenhuma palavra, mas o olhava profundamente, com ódio indisfarçável;
Pousava a bandeja no chão e sem dizer uma só palavra fazia-lhe sinal para começar a comer. Ele mais se encolhia no canto da parede, a cabeça começava a tremer de um lado para outro, o olho direito piscando involuntariamente, sem em nenhum momento deixar de delatar pessoas, dar seus nomes e culpas e crimes e delitos. A mulher de burca olhava-o nos olhos e via olhos vazios.
E em silêncio saia do quarto deixando lá a comida.
O silêncio dominava o ambiente, que logo seria quebrado pela chegada de outra pessoa, a pessoa que o interroga há tantos dias.
A porta é aberta e logo fechada com um chute do coturno do sujeito. Na parede, quase grudado nela, covarde começa a descontrolado.
- Porque não tocou na sua comida? Está ruim? Ou pensa que pode exigir outra coisa?
Em resposta um grunhido.
- Venha, coma!
Grunhido.
- Está sem apetite? Vou dar um jeito nisso agora.
Ele abre a porta e grita para alguém lá fora.
Em resposta chegam dois capangas.
- Ele está sem fome... – e ordena. – Vocês já sabem o que fazer.
Os dois capangas pegam o covarde pelos braços finos e o líder deles começa a espanca-lo, soca o rosto, enche suas costelas de pancadas e por fim chicoteia-o até sangrar. O covarde grita, chora e pede clemência, promete dedurar quem eles quisessem. O covarde passa, agarra-se aos coturnos do algoz, e grita mais e mais nomes. Mais nomes que ontem, mais cargos, ele dá os nomes dos filhos do pessoal da repartição, ele entrega os nomes dos entregadores de comida, o nome do dono da banca de jornal da esquina, os nomes dos vizinhos, dos irmãos da igreja, ele começa a entregar os nomes dos santos católicos, das entidades das religiões afro, e só parou ao levar uma bofetada na cara.
E de súbito pôs-se a comer a refeição da bandeja.
- Quer mais nomes, quer mais? – e engasgava com a comida que engolia sem mastigar, com medo que a recolhessem sem que pudesse comer tudo – eu digo o que senhor quiser saber, eu digo, eu digo, digo sim!
- O que você trás no peito? Vamos diga-me seu miserável.
Mastigando a comida babava sobre o peito magro olhando, assustado, para o homem à sua frente.
- Trago De... – tentando ficar de pé, com as mãos sujas sobre o peito não terminou a palavra e mesmo antes da bofetada começou a arrastar-se de volta ao canto da parede.
-Trás o quê? Vamos miserável, trás o quê?
Mas a essa altura dos acontecimentos o covarde entrava em transe e começava a chorar e balbuciar mais e mais nomes.
Antes de deixarem a sala o líder diz que escárnio e volúpia:
- Já vamos servir o café.
- Café não! - Um urro fez se ouvir, e os três algozes riram.
***
Muito ante.
O Covarde chega à repartição.
Senta-se à sua mesa, liga seu computador. É o primeiro a chegar. Começa a revirar os papeis sobre a mesa. Sua cabeça começa a mexer-se de um lado para outro, se olho direito põe-se a piscar descontroladamente. O telefone toca, ele assusta-se.
É o diretor que liga de sua casa, enquanto fala é possível ouvir o ruído do café da manhã e da TV ligada.
E começa a litania diária:
- Sim senhor, vou fazer. Sim senhor eu já fiz. Como fiz errado? Que disse isso? Sim senhor não me interessa saber. Sim vou refazer agora. Como que o senhor quer o aquele relatório na sua mesa em meia-hora? Aquele que o senhor me pediu ontem às sete horas da noite? Não senhor, não estou de ironia com o senhor... Como senhor? Porque ainda estou ao telefone? Sim vou desligar o telefone senhor, tenha um bom dia senhor. – o Diretor já havia desligado o telefone.
O Covarde olha sua mesa cheia de papeis, olha o relatório que sequer foi começado, olha para planta das reformas em andamento. Suas mãos começam a tremer...
Ele chama o elevador e vai ao terraço do prédio, no ultimo andar. Dirige-se à murada e diante do mar e do céu esplendorosamente azul ele grita:
-Senhor meu Deus que te trago em meio peito! Socorre-me, ajuda-me vinga-me diante de meus inimigos – começa a chorar histericamente – livra-me de meu Diretor, livra-me da colega ao lado que me enche de serviço, livra-se ó Senhor daqueles que me exploram tão acintosamente, aparta-me do sujeito do RH que não gosta de mim e se diz agnóstico. Livra-me dessa toca de leões.
Senhor – agora de joelhos – senhor, a ti sacrificarei todos os meus inimigos, como Abraão sacrificarei minhas filhas a ti, dai-me forças meu Deus de Israel. Continua lamuriando-se por mais dez minutos, quando seu rádio bipa, é a colega de trabalho.
- Fale – resmunga enquanto secas as lágrimas – pode falar.
- Estou ligando para a sua sala e você não me atende! Não vá me dizer que ainda não chegou... Hoje é dia de você apresentar o Relatório ao Diretor. Por favor, não vá me, digo, nos decepcionar. Estou contando com você, estamos todos contando com você, e não me pergunte de suas férias, já falei, já falamos que você nos é imprescindível, por favor, vire esse disco, não posso falar mais, estou entrando no elevador.
- Até mais, não nos decepcione!
O Covarde desliga o rádio, guarda na cintura, e, ainda de joelhos olha para o céu e murmura:
- Essa é colega senhor meu Deus de Israel, marque-a com seu sinal. Vinga-me, vinga-me!
Ele volta à sua sala, sua mesa, olha para os papeis e se pergunta por onde começar.
O Covarde de tem um nome próprio que só o pessoal do RH sabe. Essa alcunha ele a conquistou dizendo “sempre sim” como na música de Chico Buarque, mas nunca se de bem, diferente do refrão da música.
- “Sim!” para todos os seus superiores e os supostos superiores. Quando chegou conquistou um carguinho de Subdiretor de Divisão, mais conhecido como o Cargo de Fantoche do Diretorzão. Cargo vago há anos e anos. O Covarde acreditou ter alguma autoridade... Que logo descobriu não ter. O Covarde além de covarde era também ganancioso, muito ganancioso, abriu mão de sua humanidade e autonomia pelos caraminguás que receberia a mais e que seria incorporado ao seu salário após dez anos.
Em pouco tempo viu-se arrependido do mau-negócio. Trabalhava mais que a equipe toda, fazia o serviço dos outros subdiretores mais velhos... Pelo mau negócio feito resolveu economizar nos gastos, que somado ao percentual de “sub” – em sua cabeça – dar-lhe-ia ao final de cada mês um dinheirão economizado. Passou a comer menos, em restaurantes vagabundo. Depois nos restaurante populares nos bairros miseráveis da cidade. Passou a tomar café das máquinas da repartição. Cortou a faxineira que ia à sua casa uma a cada três meses, começou a trabalhar amarfanhado a ponto de uma sua subalterna perguntar um dia:
- Você guarda suas camisas em garrafas?
Ele não entendeu a piada. – ele não tinha senso de humor, ele não tinha outro assunto que não fosse sobre religião, sua igreja. E dinheiro!
Podendo, evitam conversar com ele. Enfadonho, ganancioso e miserável. Uma vez um grupo de bon-vivants conversavam sobre uma determinada pastelaria, que era formada por dissidentes de outra pastelaria mais famosa no Centro da cidade. Ele ouvindo o diálogo achegou-se ao grupo e comentou:
- Não ponho meus pés lá de jeito nenhum. – e fez uma cara feia.
Um infeliz, neófito, pergunta:
- Mas porque, é ruim assim?
- Aquela pastelaria é do meu cunhado e quando eu ia lá ele costumava cobrar de mim... - Silêncio, pois ele já estava tremendo com o olho direito piscando e criando espuma nos cantos da boca. – Mas eles são uns trouxas, pois o que sobra ao final do dia eles levam para a minha sogra – sorriu um sorriso disforme. Para terminar a conversa, completou, tentando ser simpático:
- Se vocês quiserem posso trazer uns de casa, quando sobrar!
***
Em casa.
Chega em casa cansado.
Faminto, e hoje não tem pasteis.
Senta-se à com a esposa e as filhas. Em silêncio, ele não tem assunto nem entre os seus. A mulher, calada, de longas e tranças que lhe alcançam a cintura; uma filha tatuada, e a outra cheia de piercings. Ele não fala língua delas, elas não se interessam pela dele.
Comem silenciosamente.
- Pai. – diz a tatuada – queria trazer meu namorado em casa... – interrompida.
- Não vou sustentar namorado de ninguém. Mal podemos comer os quatro, aqui não comerá cinco. Não podemos contar com os pasteis para sempre.
A filha dos piercings começa a chorar.
- O que foi que houve?
- Meu namorado...
- Já disse que aqui não come cinco e muito menos seis!
Elas levantam-se da mesa e vão chorar no quarto. A mulher olha para o chão esperando a explosão do “esposo”!
E ele explode.
- Passe-me os pratos delas, aqui não se desperdiça comida. – ele come os restos dos pratos das filhas.
Terminado o jantar ele dirige-se aos fundos da casa para orar ao seu senhor.
- Senhor encarrega-te das minhas filhas! Eu já não sei posso continuar com essa situação. Já me faltam forças, o dinheiro que recebo não dá mais para quatro pessoas o que tenho no banco não é para sustentar os namorados, os filhos que virão, Senhor esse dinheiro é meu! Deus afastai das minhas filhas esses namorados indignos e sem posses, dai a elas bons varões que possam nos sustentar a todos. Senhor sejais meu escudo e minha lança, vingai-me, vingai-me! E prostrado no chão põe-se a chorar convulsivamente.
Mais tarde, de volta para dentro de casa, recolhe-se ao seu quarto para dar continuidade ao relatório do Diretor.
- O que está fazendo – indagada a esposa.
- O Relatório do meu Diretor. – bufa
- Mas se é do seu Diretor, porque você esta fazendo então? Diga não a ele.
- Nunca digo não a um superior, nunca. Eu preciso desse dinheiro para sustentar os seus luxos e de suas filhas.
- Não há mais ninguém que possa fazer isso?
- O meu Diretor só confia em mim. – bufando o outra vez. – Ele diz que sou insubstituível.
- Ele confia em você ou é você que não tem coragem de lhe dizer não?
***
Pouco depois dessa conversa.
O Covarde acordou de madrugada para ir ao banheiro, depois volta aos fundos da casa orar mais um pouco ao seu deus. Reclama a ele de seu desgosto com suas filhas, com sua esposa, com seu emprego, vomita seu ódio imponte de seus superiores pede, clama, implora, suplica, roga, exorta uma vingança, chamas e enxofres sobre os fariseus que o cercam e o exploram.
Quando tudo, de repente fica escuro e sufocante. O Covarde, amedrontado, desmaia.
***
Agora.
Ainda se ouve seus urros.
- Café não...
O tempo passa, ele não percebe entocado no canto da parede. O Covarde pensa no café e se urina, baba e chorar. Ele está imundo, há quanto tempo está ali? Como foi parar ali? O que fez ao senhor seu Deus que carrega no para estar ali? Passos. Aproximando da porta... Seus tiques nervosos começam a manifestar-se...
A porta é aberta com violência.
- Olha o café. – o Covarde grita por perdão e chora. – venha para perto de mim tomar café.
O desgraçado rasteja e enquanto rasteja se urina ainda mais. Sua cela fede.
- Você gosta muito de café, não gosta?
- Sim, gosto do café da repartição. – interrompido.
- Café da repartição? E os cafés que você força o terceirizado te pagar nas cafeterias? Você não tem escrúpulos? Vergonha na cara?
- Mas eu não tenho dinheiro para esses luxos, sou pobre, sou miserável, o menino é que me oferece... – interrompido com uma chicotada nas costas.
- Como você ousa considerar-se miserável?- chicotada nas costas, nas pernas – você se preocupou menino, o quanto lhe fez falta esse dinheiro? – Venham gritou aos dois capangas.
Eles entram de máscaras pretas.
- Façam o que deve ser feito. – em direção à porta ele grita: - O café. Bem quente.
Entra a mulher de burca trazendo a bandeja com uma dúzia de xícaras de café quente.
O Covarde aos gritos pergunta, desesperado se o algoz que mais nomes, ele dará mais nomes, ele já deu o nome da esposa, das filhas, as duas, do Diretor, dos subdiretores, da subdiretora que nunca está na repartição, deu o nome dos namorados das filhas, - Sim vocês podem até mata-los, assim serão dois a menos à mesa – eu entrego quem vocês quiserem, só me façam mais mal...
Os dois capangas seguram os Covarde, o algoz abre-lhe a boca e pede à mulher de burca:
- Primeira xícara...
A cada tentativa de se esquivar da xícara uma bofetada na cara, o café descia-lhe quente pela garganta e pelo pescoço, queimando lhe o peito, a barriga, as pernas.
-Segunda xícara... - Sinta o sabor da exploração, da sua ganância, da sua covardia, seu rato miserável.
- Terceira xícara. - Covarde. Sem vergonha na cara explorando um peão para se mostrar superior.
- Quarta xícara. – querendo dar fim às filhas para economizar comida...
- Quinta xícara. – entregando a esposa...
- Sexta xícara - mandar matar os namorados das filhas para comerem da sua comida...
- Sétima xícara – pedindo a se deus que ele lhe arrumasse varões ricos para sustentar sua miséria material...
- Oitava xícara – o que você trás no peito miserável? Diga-me.
- Trago em meu peito – arquejando com os braços arrebentados tenta levantá-los em direção ao tórax – meu, meu, meu Deus!
- Nona xícara – e essa está fervendo – depois de todas as suas patifarias você tem a coragem de dizer que tem deus no coração? Beba esse café miserável. – o café fervendo lhe cobre o rosto, os cabelos e ele grita:
- Senhor meu deus! Livrai-me desses fariseus que não entendem que eu falo em teu nome, senhor mostrai teu poder, fulmine-os em meu nome, meu deus, meu deus, meu deus!
- Décima xícara de café, essa será a melhor seu miserável, tua covardia e tua ganância te levou isso, hipócrita! Tirem as máscaras agora!
E então para o desespero do Covarde sob as máscaras apresentam-se sua esposa, as duas filhas e o Algoz.
E o miserável clama aos céus:
- Obrigado senhor meu deus, obrigado pelo amor da minha família me salvou. Como sou grat...- ele é interrompido por uma bala que lhe atravessa a cabeça.
***
Mais tarde ainda, repartição:
- Esse miserável, morreu sem se quer começar o trabalho que deixei pra ele fazer! – reclama a subdiretora. -E eu enrolando o nosso Diretor a respeito do Relatório ele que não fez... Covarde inútil!
- E agora, o que faremos? – pergunta o sub-assessor da subdiretora.
- Veja no RH mais alguém com perfil de covarde subalterno, tem sempre um vendendo o almoço para ter o que jantar à noite... – Agora, todos ao café!
Ah! A miséria humana, os humanos miseráveis.
O dinheiro é o Bezerro de ouro...
Que queimem no inferno esses rastejantes que se passam por homens.
Malditos seja todos!
Desculpemmeu desabafo.
Maria do Céu.