Primeira impressões: alice bispo
- cafe & outras palavras
- 9 de set. de 2019
- 5 min de leitura

Eu me lembro bem do perrengue que foi para que eu finalmente pudesse trabalhar. Todas as noites pensando que seria rejeitada - afinal meses antes já tinha sentido esse gosto amargo de ser posta de lado - e toda a ansiedade comum que vem de uma nova experiência. Eu sabia que não era uma entrevista de emprego, era uma apresentação. Eu estava conhecendo o que viria a ser meu cotidiano, meu ambiente comum, minha labuta, lida, enfim. Eu iria conhecer as pessoas que fariam parte da minha nova vida, a vida de estagiária. Mas, foi foda. E eu lembro bem daquela primeira impressão.
Todos os dias, depois que fiquei sabendo do emprego, eu dormia e acordava com esse primeiro pensamento: "eu tenho a porra de um emprego. Eu tenho um emprego de merda". Eu sempre odiei a ideia de trabalhar, não por preguiça nem nada, mas pelas responsabilidades e chatices de ser empregado de alguém. Eu precisava cumprir padrões esperados de mim, do que a estagiária deveria ser, do que a adolescente deveria ser, e isso é horrível. Em todos os malditos cargos há a pressão idiota para que se sigam os padrões de produtividade e representatividade. Você não é você de verdade, você é o que eles pensam e querem que você seja. Ponto. E isso me obrigava a encarar um molde que eu repudio dentro de um sistema que me invisibiliza. E tudo isso é uma merda.
Eu sei que eles não esperavam muito de mim. Eu era uma adolescente em seu primeiro emprego, pronta a sorrir e respeitar os velhos que - supostamente - estavam ali para me ensinar. Eu era uma estagiária que passou num concursinho e deu sorte de estar ali. Eu era alguém novo. Eu era a curva da rotina do segundo semestre. Eu era carne fresca. E eu me sentia como uma droga de peixe pequeno circulando por tubarões velhos e ranzinzas e perturbados.
Sempre que eu pensava sobre meu primeiro emprego eu imaginava de uma forma mais bonita. Isso é óbvio. Foi o que a escola, meus amigos, meu pai, todos eles plantaram em mim. Foi o que eu pensei desde muito nova. Mas, o primeiro emprego é o mais assustador. Como tudo que ainda não tem referência na vida. Tudo que não se baseia em algo experimentado anteriormente. E o meu não foi diferente.
Só uma pausa aqui. Eu estou lembrando dessas coisas porque achei interessante que meu eu futuro pudesse ler tudo isso e tirar alguma coisa de bom. E eu também sei que alguns adolescentes, assim como eu, provavelmente estão muito assustados com a ideia de crescer. Eu estou muito assustada. Mas acho que seja normal. Tudo é parte de uma rotina biológica cíclica. Os mesmos problemas, as mesmas raízes, sendo cultivadas em corpos diferentes. É o que somos. A repetição do ontem, a repetição de nossos pais. A repetição da droga dos nossos pais.
Eu esperava que fosse ser algo mais difícil. Da minha rotina eu lembro de muitas coisas, mas as que mais me vêm à cabeça são duas em especial: a vontade insaciável por mais um copo de chocolate com capuccino e a minha falta do que fazer. Eles não deveriam estar muito acostumados a ter alguém ali com menos de 35 anos. E eu nem de maior era ainda. Então, era como se eles dessem vidro para crianças hiperativas. Eu era a criança hiperativa. O meu trabalho era o vidro. E eles eram eles. Então, tudo que vinha de mim, tudo o que eu fazia, era recebido com desconfiança. Alguns minutos eram sempre vitais até a confirmação de que eu tinha acertado.
Não que eu não errasse. Eu errava muito. Eu esquecia muitas coisas que já deveriam estar absorvidas, mas mesmo assim, a desconfiança era ridícula. Mas eu aprendi a lidar. Eu aprendi a lidar com olhares de desprezo, aprendi a lidar com o tratamento infantil que eu recebia e aprendi a ser nada, a ser vista como nada, a não ser enxergada e a não ser levada a sério. Mas, para mim, tudo seguia como uma confirmação de que o trabalho, o trabalho dos adultos, é tudo uma grande encenação barata e competitiva do que a selva civilizada deve ser. Isso quer dizer que as pessoas se odeiam por razões estúpidas. As vidas não significam nada. Os valores são restritos a superfícies de poder. E tudo o mais é um grande tédio.
E o tédio começava bem cedo. Eu acordava duas horas e meia antes do meu horário de serviço. Era de uma cidade à outra e eu morava muito longe dos centros. Eu morava praticamente numa cidade à parte. E para que desse tempo, eu tinha que pegar o ônibus bem cedinho, ainda com o gelado da manhã. E eu chegava a tempo. Sempre uns dois ou três minutos atrasada, quando o ônibus demorava, ou uns dois ou três minutos adiantada, quando de dias comuns.
Eu não conseguia nem uma cadeira no ônibus na ida, era tanta gente fodida, até ainda hoje, que é muito difícil um assento tão cedo. Mas eu sempre pensava nessas pessoas. Pessoas que trabalhavam em tempo integral, em trabalhos pesados e muito mais alienantes que o meu, que precisavam daquele salário de merda, todas elas entregando suas vidas, seu tempo, sua juventude, em troca de comida, de casa, dos filhos. Eu sempre pensava em suas expressões vazias como resultado de suas mentes ociosas e tristes. Eu pensava até demais. Então, na ida, era sempre esse frescor da manhã que logo se esvaia no peso da responsabilidade.
É muito mais fácil ter que ler sobre tudo isso. É muito mais fácil refletir sobre isso e não fazer nada, continuar com suas comodidades, dentro da sua elite instruída, que saberá o que replicar, que tom usar, saberá te responder à altura. É mais fácil que os outros pintem uma realidade massacrada, apontem os defeitos, mas é muito difícil estar, pertencer a essa realidade. É foda ser uma estatística. E por muito tempo o meu olhar sobre essas pessoas foi de pena. Porque eu imaginava que saber essa realidade me tornava superior. Eu me sentia superior. Eu me orgulhava do que eu consumia, do que eu lia, mas no fundo sempre a hipocrisia me punha no meu lugar. E é esse o ponto aqui, agora: a nossa necessidade de sobreviver e nos submeter a empregos de bosta não nos faz inferior; a nossa necessidade de descanso não nos faz preguiçosos nem alienados; a nossa necessidade de lazer não nos faz sem perspectiva; a nossa necessidade de rir não nos faz estúpidos. Tudo tem seu tempo, tem seu lugar. E eu aprendi que cada um tem um rosto, tem um porquê. E eu, eu sou igual e me orgulho.
Comments