top of page

Sobre a melhor história: alice bispo

  • Foto do escritor: cafe & outras palavras
    cafe & outras palavras
  • 14 de ago. de 2019
  • 5 min de leitura


"E era obsceno. No mundo real. E quem quer viver lá?" - O lobo de Wall Street.


Eu preciso que alguém escreva as histórias que quero ler. Eu preciso que alguém me dê voz, me dê identidade. Porque, no fundo, tudo se trata de identidade. Quando eu não tenho nada, eu preciso de mim mesmo.

As coisas são mais simples do que parecem. Mas, o medo, sempre o medo, ele corrompe tudo e faz parecer algo muito maior do que realmente é. As histórias que eu contei nenhuma delas era mentira e todas nascerem da necessidade de compreensão. Mas eu não vou ser tão mentiroso assim. Na verdade, as minhas histórias nascerem de forma independente, quando eu ainda não tinha entendimento o bastante para decifrá-las. E foi acontecendo tudo muito rápido. E todos os meus medos começaram a afetar as histórias de uma maneira que não conseguia controlar.

É algo cíclico.

E vai se repetir, não importa o quanto eu tente evitar.

Eu vou ser mais claro: toda essa história barata e mal contada sobre escrever é muito chata. O que realmente importa é se você gosta do que escreve, no fim do dia. Se te agrada e te comove, não importa. Eles vendem uma ladainha falsa sobre poesia e criatividade. Quer saber o que incomoda de verdade? Sinceridade. Isso incomoda. E todas essas regras frias que não significam nada para a escrita. Eu digo que não significam porque não significam. Eles querem saber se você consegue contar uma boa história. Então eu sempre fiz isso. Mas aí os meus sentimentos começavam a tomar conta e eu me sentia culpado, porque tudo se resumia aos sentimentos. Tudo, absolutamente tudo.

Então, que seja:

Tinha esse menino. Não importa como você o chame, o fato é que ele era medroso pra caralho. Tudo quanto história que ele fazia era sobre o medo. Mas o medo é sincero, então ele não sentia que era um medroso, mas alguém sincero sobre suas fraquezas. E começou a engrossar. As histórias começaram a ter uma personificação idiota do cinema de terror. Ele criava alguns mundos, mas todos muito fracos e previsíveis. Era tudo sobre cinema, todas as partes, na verdade eram divididas como roteiro. Quer dizer, roteiros funcionam para a câmera, não para o papel. No papel, tudo fica subdividido e opaco. Tudo vira enlatado, porque depende de reflexão e imaginação. Mas ele não queria que fosse assim. Então, suas personagens, cada uma representando um sentimento medroso diferente, encaixavam-se umas nas outras. Ele fingia descrever algumas partes e algumas ruas, casas, jardins, roupas, etc. E daí: cinema em literatura.

Não funcionava.

Nunca funcionou.

Esse mesmo menino, sem nome, sem rosto, sem identidade, ainda se resumia nos medos e nos roteiros medíocres. Mas ele acreditava em si mesmo, porque era isso que os demais, os adultos, falavam. Você tem que acreditar que consegue fazer uma boa história, para fazer uma boa história. E ele continuou e acreditou. E fez uma boa história. Ou, ao menos, era nisso que acreditava.

Até morrer.

Eu sou esse menino.

Eu gosto de acreditar de que existe destino e inferno e essas coisas. Eu sei que era óbvio que era eu. Porque eu tenho medo.

Enfim.

Eu fiquei grilado porque as minhas histórias não tinham sabor de verdade. Como eu disse, era tudo enlatado do cinema e feito para parecer um roteiro. Cada parte eu dividia para atuação. Eu imaginava tudo como uma progressão lenta dos meus sentimentos, até a loucura, que seria o último dos medos. Mas eu não conseguia dar a todos os meus personagens uma sensação real de dor e desespero. Eu nunca tinha enfrentado dor e desespero no limite necessário para escrever sobre dor e desespero. Mas, ainda grilado, eu pensei que a melhor maneira seria sentir todos de uma vez. Sentir a progressão lenta da dor até a loucura. Mas teria que ser em outra pessoa, para que eu pudesse contar.

Mas depois, claro, eu iria provar.

Essa outra pessoa deveria ser alguém da minha família, mas não tão próxima ao ponto de eu me sentir culpado. Deveria ser algum parente que eu pudesse convencer. E eu convenci. Mas apenas à minha prima de oito anos, a garotinha da história. Ela topou enfrentar algumas coisas com o primo escritor, apenas para sentir o peso de ser uma musa inspiradora. Eu expliquei a ela o que era uma musa inspiradora e ela concordou acreditando ser algo parecido com as princesas da Disney. As crianças, como os adultos, adoram um pouco de fama e gozo, tudo em seus graus e estantes.

Eu a coloquei em minha cama e perguntei se ela já foi tocada antes. Eu expliquei que isso era repugnante e eu queria que ela me falasse como se sentia. Eu comecei em seus ombros. Apertei até que ela soltasse alguns sons desagradáveis. E eu perguntei o que ela sentiu, além da dor. Ela disse que não tinha entendido o que eu queria dizer. Eu disse que se ela estava desconfortável com alguma coisa, com o meu toque, que falasse. Então, ela abaixou os olhos, tímida, e disse que seu pai a tocava nos ombros dessa mesma forma. E que falava em seu ouvido para ficar calma, porque os papais faziam isso com as suas garotinhas. E eu apertei novamente e perguntei "assim?" e ela concordou com a cabeça. E eu disse que estava tudo bem.

E continuei.

Eu passei pelos seus braços, mãos, fui para o busto, barriga, contornei seu umbigo lentamente... e ela soltou algumas risadas, dizendo que aquilo lhe causava cócegas. E eu perguntei se seu pai fazia a mesma coisa. E ela disse que sim. E eu continuei. Eu estava num encantamento profundo, sentindo que ela sentia alguma coisa desconfortável, mas era muito nova para determinar com clareza o que era. Isso só deixava as coisas melhores. Afinal, eu tinha sabor e ela jamais entenderia ou contaria para alguém. Seu pai fazia o mesmo, não fazia?

Se você está esperando pela parte que conto sobre tocá-la mais intimamente, ou seja, em sua vagina, isso não aconteceu. Existe uma regra no erotismo que diz que as coisas implícitas causam mais impacto que o sexo exposto e nu. Não tem graça se eu tocar em suas partes sabendo o que vou encontrar. Eu preciso sentir o gosto da procura, preciso deixar em branco o meu entendimento, para que haja metáfora. Parece confuso, mas é o que é.

Depois do medroso toque, sim, medroso toque, existe a medrosa dor. A medrosa dor existe como um aviso à dor real. Nos livros, ela aparece como suspense. Todas aquelas linhas descritivas e chatas sobre qualquer coisa deixa a coisa em si endeusada.

Lembra da regra do erotismo?

Então, é isso.

Nós não queremos imaginar o antagonista golpeando o protagonista até a morte com um machado na primeira página. Isso não causa terror. Mas, se nos focarmos nos passos do vilãozinho de merda, se nos propusermos a acompanhá-lo até o momento de clímax, aí há medo. O desespero puro e sólido.

E eu fiz isso.

Você quer saber como foi?

Ela me disse que gostava dos desenhos da hora do almoço. Então, eu a chamei na hora do almoço. Minha mãe não estava em casa então foi muito fácil a parte da medrosa dor. Eu, como um primo exemplar, comprei algumas bolachas recheadas, sempre com o objetivo de fazê-la se sentir mais à vontade. Para que não haja problemas nas progressões. Eu apertei os ombros... espera?

Os ombros, tudo de novo?

Não.

Eu não quero que ela sinta os mesmos sentimentos.

Não é produtivo.

Violência por violência?

Não foi isso que acabei de rechaçar?

Que se dane.

Ela já fez mais coisas com o papai, não foi?

1 Kommentar


silvana.amaral.machado
15. Aug. 2019

Forte heim....mas muito bom!

Gefällt mir

©2019 by CAFÉ E OUTRAS PALAVRAS. Proudly created with Wix.com

bottom of page